Foto: Reprodução/Corinthians
Tudo parte de uma pergunta muito simples: quem é melhor? Não vou entrar na polêmica sobre o caráter exclusivista do esporte de alto rendimento nem no debate sobre meritocracia. A questão é mais simples e é objetiva. Temos um número finito de atletas que podemos trabalhar na nossa categoria de base. Sendo assim, é preciso fazer escolhas. Como escolher com o auxílio dos dados e qual o impacto dessa decisão nos processos de uma categoria da base? É sobre isso que leremos a seguir.
Cada clube tem sua realidade e sua capacidade operacional, mas todos eles, em algum momento, vão precisar dizer que não podem mais receber ninguém. Por mais atletas que estejam dentro do clube, ainda assim não vai faltar atleta querendo entrar. E agora? Como a gente escolhe quem vai receber treinamento ou não? Qual sonho a gente vai frustrar? O desenvolvimento de que ser humano não vai ser mais nossa preocupação?
O desdobramento dessa questão pode ser cruel e muitas vezes até injustas. Todos temos vários casos para contar nesse sentido. Se para a crueldade da limitação econômica não há solução, será que encontramos uma para sermos sempre justos? Para colocar para dentro dos clubes o atleta certo? Solução definitiva, certamente não teremos. Mas um dos vetores para a tomada dessa decisão é a estatística. Os tais números. Os dados. E quando essa solução entra em cena impacta todas as coisas.
Com as ferramentas de produtiva cada vez mais – literalmente – nas palmas das mãos, com os smartphones e os tablets, a coleta e a análise de dados no futebol transcendeu as fronteiras dos grandes centros e das equipes principais, se estabelecendo como um pilar fundamental nas categorias de base – que o diga Paco Seirul-lo e La Masia barcelonista.
A coleta sistemática de dados de jogos e também de treinos não é mais só uma tendência nem só uma revolução na formação de atletas. Nós já passamos disso. Vivemos a era em que os dados foram assimilados e estão presentes de cima a baixo nas estruturas dos grandes clubes, seja em jogos ou em treinamentos. O que a popularização das ferramentas e do acesso à internet têm impactado agora são os contextos de menor investimento, como o da maioria esmagadora do nosso Brasil.
O presente artigo busca explorar como essa prática de coletar dados nos treinos e nos jogos pode remodelar os processos de desenvolvimento nas categorias de base, impactando tanto os talentos emergentes quanto os treinadores e dirigentes. E se essa cultura não se estabelece de cima para baixo, a partir dos dirigentes, eu, como analista de mercado/scout, sugiro que a gente mude nossa cultura de baixo para cima, tornando óbvio, a partir do trabalho duro, que decisões mais inteligentes são tomadas quando ancoradas nos dados.
Vamos para a prática
Pare por alguns minutos e comece a anotar tudo o que você acha minimamente necessário observar em um atleta para ter uma avaliação honesta e imparcial sobre ele. Depois estabeleça como medir cada um desses critérios. Vamos chamar esses aspectos descritivos e mais subjetivos de “Indicadores de Desempenho” e as anotações para medições de “Métricas”.
Por exemplo: Indicador de Desempenho: “Eficiência nos Passes” ou, como mais vemos por aí, “Bom Passe”. Todos concordamos que um atleta tem que ter um bom passe, certo? Mas o que é um bom passe e como separá-lo do passe ruim? Qual seria ou quais seriam as métricas correspondentes? Como eu quantifico um bom passe? Passe certo ou passe errado é um bom começo. E poderíamos parar por aí. Mas sempre há mais camadas. Diria até que infinitas camadas.
O que a gente vai fazer é tentar tornar essa tarefa possível para o dia-a-dia corrido de um clube de futebol. Embora anotar o número de passes certos e errados seja um passo necessário, pode ser superficial demais. Então vamos além. Vamos encontrar mais camadas para estabelecer métricas que qualifiquem esse passe certo e errado e me diga mais sobre o atleta.
Por exemplo, um passe certo é diferente de um passe certo que vira gol. Tanto que ele passa a se chamar assistência. Mas um passe certo que gera finalização que não é gol também pode ser anotado separadamente. Da mesma forma, um passe que não gera finalização por erro do finalizador pode ter sido muito bom e ter criado uma chance clara de gol.
Ainda tem o passe que quebra linhas, o que tira a bola da zona de pressão, o que ajuda a equipe a progredir verticalmente no gramado e por aí vai. Lembra? Infinitas camadas. E estamos em apenas um fundamento. Certamente dá pra gastar muita tinta definindo indicadores de desempenho e métricas.
A grande vantagem é que quando você define o número de indicadores de desempenho que você quer medir e quais as métricas que devem ser coletadas você passa a ter um critério objetivo para registro. Depois que você vai a campo (normalmente ao vídeo) e registra as ações numa planilha, a magia acontece.
Você acaba de transformar o lúdico, o jogo, a arte de jogar futebol em dados. Quanto mais camadas, mais desdobramentos, mais insights, mais profundidade. Porém, de forma sintética, o que importa é o uso que será feito dessas informações. Os impactos na cultura provêm daí: de transformar informação em inteligência.
Aplicações
A primeira aplicação prática é a comparação do desempenho do atleta com ele mesmo. Normalmente, dois aspectos podem ser comparados: a eficiência de execução em determinado fundamento e/ou suas quantidades absolutas. No primeiro eu trato de percentual de acerto. No segundo, do volume de ocorrências/registrados.
Ainda no nosso exemplo escolhido, o do “Bom Passe”, podemos verificar a variação percentual de erros e acertos e o número absoluto de registros. Hipoteticamente: uma queda de 80% para 70% de acerto nos passes entre um jogo e outro; porém com aumento no número absoluto de passes de ruptura tentados de 1 para 4, gerando pela primeira vez 2 chances claras de gol e, ainda, 1 assistência.
Agora imagine isso sistematicamente ao longo da temporada ou de um determinado período. É bem possível que seja detectada uma oscilação de desempenho. Porém, dentro do contexto da categoria de base, onde formamos atletas com treinamentos diários em busca do mais alto desempenho possível, o que é esperado? Um crescimento no aproveitamento.
E sabe qual a melhor forma de avaliar se esse crescimento é bom ou ruim? Comparando com os demais atletas que estão sendo submetidos ao mesmo treinamento. Nesse exercício de comparar o atleta com os demais, a gente vai descobrir uma média do grupo e verificar quem está acima ou abaixo dessa média. Se acharmos pertinente, podemos buscar times de referência e verificar se estamos num patamar semelhante ou não. Se já fazemos isso há algum tempo, podemos verificar o rendimento da última geração e a partir daí fazer experimentos e investigações diversas.
No final das contas, o que queremos é critérios que nos ajudem a fazer boas escolhas e boa gestão. Antes de sairmos por aí trocando peças e dispensando atletas, vamos poder intervir com treinamentos específicos. E se o grupo inteiro não estiver respondendo bem, pode ser que o ajuste precise ser feito na metodologia de treino. Talvez isso indique uma necessidade de capacitação para os treinadores e, no limite, a contratação de novos treinadores.
Mas, a partir daí, já não será uma decisão ancorada apenas no gosto do dirigente ou no resultado do final de semana. A ideia será contratar jogador ou treinador que traga ao conjunto da base, dentro do nosso exemplo, mais qualidade de passe.
Concluindo, nesse caminho de definir objetivamente, por meio dos dados, o que é bom e o que é ruim você impacta tudo. De baixo para cima, você impacta na percepção sobre o atleta, na percepção sobre o grupo, no treinamento individual, no treinamento coletivo, na seleção de atletas, na capacitação de treinadores e, quando a coleta sistemática ultrapassa os 6 meses do calendário, ela já estará nas mãos dos dirigentes servindo de base para as tomadas de decisão.
Essa é minha aposta. E a sua? O que achou? Concorda que basta um smartphone e uma planilha? Acha ruim esse tipo de impacto? Tem receio de definir os indicadores de desempenho ou as métricas? Sugere algum outro caminho? Estou sonhando demais ou você já enxerga essa realidade no seu contexto?
Texto de Filipe Calmon
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