Se comparássemos um “camisa dez” a um animal, ele seria uma onça-pintada. Ou quem sabe um lobo-guará. Poderia até ser um mico leão dourado. Por mais que este jogador possa ser letal como a onça, ágil como o lobo ou tão bonito quanto o mico, a comparação é porque todos estes animais estão em extinção. Todos eles.
O “camisa dez” é um jogador criativo, que sabe pensar o jogo. Dos onze titulares, é aquele que não perdeu a alegria de jogar. Atualmente, o futebol é muito burocrático. E nós, como brasileiros, não podemos perder a cultura do nosso futebol: a criatividade, a leveza, a alegria e o encanto. O “jogo bonito”, como resumimos. Este jogador é a soma de tudo isso. Ele é o brasileiro em sua essência.
Neymar, Messi, D’Alessandro, Alex Cabeção, Everton Ribeiro… Por mais que todos estes maestros tenham características diferentes, eles têm as qualidades de um “dez”. Mas pare e pense: quantos atletas assim nós temos hoje surgindo no Brasil?
O surgimento do camisa dez
Na nova geração, quando paramos para pensar neste perfil, encontramos poucos destaques nessa posição e nos questionamos: por que eles estão se extinguindo?
Mas, como surge um dez? Primeiro, obviamente, o jogador precisa de um dom natural que todo atleta tem. Ele é o excepcional. Na maioria das vezes, o que tem mais talento. Entretanto, o processo de formação precisa ajudar a lapidar e fomentar este tipo de jogador.
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Jogadores criativos e com tomada de decisão ficaram escassos no cenário brasileiro. A nossa sociedade (e eu faço parte dela) restringiu estes jogadores desde às ruas até o clube. No dia a dia, não se joga mais futebol. Nós precisamos dar essa liberdade para a criança e o adolescente, literalmente, brincarem com a bola. Na minha concepção, hoje nós limitamos o treinamento. E, assim, perdemos essa característica nata do brasileiro no meio de campo e terço final do campo muito pelo conceito de jogo atual: o toque de bola.
O clube (técnico, auxiliares, dirigentes, analistas, etc.) pensa atualmente muito mais em questões táticas do que antigamente. Há uma profissionalização na hora de criar um treino. E isto é ótimo! Mas também há, na formação do atleta, uma limitação da liberdade e da tomada de decisão dos jovens.
O treino em dois toques, por exemplo. Hoje ele é comum nos maiores clubes do mundo e muitas comissões técnicas baseiam seus trabalhos com essa característica. Mas o treino em dois toques limita o drible. Ali, ele não existe. Isso automatiza os jogadores e faz com que a gente perca a criatividade na função ofensiva e na disputa de um para um. O culpado, é claro, não é este trabalho em si. É um conjunto de processos.
O atleta precisa se divertir. Ele precisa gostar do esporte, de bola. Ele não precisa apenas gostar de tática e formações. Esse é um desafio nosso, da comissão técnica. Para passar alegria às arquibancadas, o jogador precisa primeiro ser alegre.
Como analista de desempenho e auxiliar técnica, este é um dos meus desafios. Saber quando deixar o jogador ser criativo e quando limitar ele dentro de campo. O camisa dez é a síntese do que nos faz gostar de futebol como um todo. É preciso entender a formação dele dentro do processo formativo e profissional. Ele precisa entender de tática, mas a criatividade tem que fluir. É isso que desestabiliza o nosso adversário. É isso que nos falta hoje em campo. É com este atleta que nós vamos chegar ao gol do adversário com mais facilidade.
E ele não pode entrar em extinção.
Texto de Michele Kanitz.