jogador na última reza
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O último recado antes da reza

Em dez anos imerso na intimidade de um vestiário de futebol pude constatar centenas de vezes algo que, à medida que as conquistas surgem, os personagens levam para fora um pouco do que foi dito entre quatro paredes. O esforço durante o percurso na véspera de uma decisão é sempre relembrado, assim como é explorada alguma crítica externa, principalmente de setores da imprensa, como combustível.

Porém, quando se joga mais de 60 partidas na temporada, por mais que a faixa de capitão alterne de braço, é natural que o discurso dos atletas responsáveis pelo último grito de “o jogo já começou” se assemelhem bastante, fiquem repetitivos e até inócuos. Puxar um algo a mais de quem está a minutos de correr em intensidade máxima os próximos 90 não é tarefa fácil da rotina dos atletas. 

Aprendi uma obviedade também: ninguém reza para ganhar – o que não faz sentido uma vez que o outro lado reza também – e sim para que ninguém se machuque, inclusive do adversário. Percebi que muitas vezes o silêncio da concentração é diferente do silêncio do descompromisso e há que ter faro para perceber essa peculiaridade. Vanderlei Luxemburgo é cão perdigueiro. Uma coisa, porém, até hoje me intriga e nunca me senti à vontade de questionar e que o faço agora aqui de fora: “Porque sempre as famílias são lembradas em primeiro plano e não o torcedor na hora de buscar o último incentivo? ”

Alto lá. Para mim, nada é mais valioso do que a família e a minha esteve até hoje comigo em todas as circunstâncias pessoais e profissionais. Dito isto, a questão que provoco, pois penso que os núcleos familiares devam ser intransponíveis, é que no caso do futebol, o resultado do jogo para a família de um jogador terá um reflexo bem diferente (emocionalmente provavelmente menor e financeiramente maior) do que o mesmo resultado para a família do torcedor comum que está na arquibancada.

Daquele que não coube no estádio, do que sofre pelo rádio ou até do que do está outro lado do mundo recebendo pelo WhatsApp a maldita mensagem de um amigo anunciando um gol antes de ele ver a bola entrar onde quer que esteja ajoelhado assistindo ao jogo. São sofrimentos diferentes com ressacas totalmente distintas em suas conotações. 

A perspectiva de doação, a meu ver, deveria ser pensando em quem torce para o time e não para quem torce para o jogador do time, no caso seu familiar. Além de serem minoria, na maioria das vezes torcem para outros clubes, o que é natural, pois os atletas são ciganos da bola, assim como seus dependentes. O torcedor, não. Nasce e morre por uma cor ou uma combinação delas. O distanciamento entre artista e público é maléfico para o esporte, por isso levam vantagem afetiva os que desenvolvem sentimento de pertencimento a alguns clubes.

Apressar o passo na chegada de um hotel, não tirar o fone de ouvido para não ouvir um pedido de um autógrafo ou desrespeitar a zona mista são comportamentos bem menos frequentes em outros esportes. Quando as competições os obriga, os atletas passam diante da imprensa e até o aceno sem dizer uma palavra diz muito. E não somente para quem está ali, pois a imprensa é o meio. O fim, é a torcida. 

Recentemente um ex-jogador com quem tive a felicidade de trabalhar me mandou uma mensagem sobre um outro assunto que não esse, mas que serve de ponto de partida para mostrar como no mesmo ambiente, a mesma rotina e durante algum tempo com a mesma pessoa, é possível enxergar pontos de vistas completamente diferentes dependendo da posição que ocupa: “JP, agora eu entendo tudo aquilo que tu comentavas e que eu não conseguia enxergar”.

Ainda no Grêmio lembro mais de uma vez quando em alguns voos com a presença de jornalistas a bordo, tanto os colegas de profissão quanto os de clube me procuravam depois para dizer: “Bah, conversei com aquele cara. Muito legal a resenha, não imaginava isso dele. Ele é gente boa”, ou: “Pude esclarecer uma coisa que me intrigava, agora entendi” e assim por diante. Posso estar errado, mas o nome disso é humanização das relações. Conhecer minimamente a realidade do outro não tira pedaço de ninguém. Basta permitir-se a fazer essa escolha, pois de posse de conclusões como as que trago aqui, as relações pessoais, mesmo que de cobrança entre repórter e jogador tendem a ser mais saudáveis. 

“O futebol é ótimo, mas faz mal para a saúde” é uma das frases cunhadas por Muricy Ramalho que anteviu seu final de carreira à beira do gramado. Sabedor da exigência da função e da pressão que sofrem os treinadores em grandes clubes, preferiu trocar o agasalho pelas pantufas e foi para casa ao lado da família, aquela que não nos abandona nunca. Não aguentou muito. Não a família, claro, pois quem o conhece pessoalmente sublinha seu lado acolhedor bem diferente daquele que público e torcida têm acesso pela distância que os separam. Não aguentou ficar longe do cheiro da adrenalina. Muricy aceitou o convite da Sportv e por lá ficou anos trabalhando como comentarista. Hoje está de volta ao São Paulo em outro cargo. 

“Foi demais trabalhar com ele! Ele mostrou que tem muita paciência (risos).  Muricy tem o coração gigante. Super entendia todos os problemas. Muito compreensivo e mega dedicado. Não tinha nada que ele não topasse fazer. Sem vaidade nenhuma. Amei! ”, revela a produtora Sarah Bueno, da Sportv e que conviveu com Muricy no comando do programa Bem Amigos.

Na Copa da Rússia lembro uma de ouvir uma saborosa história a respeito de outro treinador. Assistindo ao Seleção Sportv, vi a incredulidade do apresentador André Rizeck contando aos telespectadores que o então convidado especial, o técnico Cuca, havia chegado ao estúdio com uma leva de lanches para todo o pessoal da retaguarda da emissora, num gesto humano impossível de se revelar à beira do campo quando as emoções e os focos são outros. 

Conhecer as outras versões de nós mesmos é um exercício de autoconhecimento. Querer conhecer as versões dos outros é uma escolha. Brincava quando um jogador vinha reclamar comigo incomodado com alguma crítica mais pesada recebida por algum jornalista.

Em alguns momentos, ouvia um conhecido apelo: “Porra, eu tenho família, tá pensando o que esse cara? ” Ao que eu respondia: “Ué, quem escreveu também tem família, ora bolas”. Passada a brincadeira, tentava explicar os ossos do ofício da profissão primordial em uma sociedade democrática e que tem o dever de cobrar instituições privadas com interesse público, como são os clubes de futebol e seus personagens. E cobrar, desagrada. 

Não posso caracterizar como fenômeno a presença de ex-jogadores de futebol em bancadas esportivas. Desde que me conheço por gente as emissoras abrem não só as portas, mas principalmente os cofres para receber grandes (ou nem tanto) nomes de chuteiras penduradas. A justiça desse processo é pauta para outra hora, mas aproveito para perguntar – sem saber, apenas imaginando a resposta – se algum ex-jogador aceitaria salário do maior jornalista que ele conhece para fazer o que faz, mas enfim…  Eles não têm culpa.

O que tenho observado é que a demanda por conteúdo dos canais pagos principalmente tem tirado os ex-boleiros da função apenas de tecer teses e assim, aos poucos, perceber que imprensa, jornalista e jornalismo são coisas diferentes e é nítida a aproximação entre as partes. 

“Sinto que o ex-jogador custa um pouco a compreender o trabalho prático do jornalista esportivo, mesmo estando mais perto, acompanhando melhor. O que é muito rápido é a percepção de que a crítica mais dura muitas vezes é inevitável. Diferentemente de um jornalista recém-formado que ingressa num veículo, o ex-jogador já está com a cabeça feita. Os conceitos mais antigos não irão embora da noite para o dia. É difícil. Além do mais, em diversos casos ainda resiste a ideia de voltar ao outro lado do balcão. Para agir como um jornalista “convencional” você tem que fazer um trabalho de imersão total, 100% nesse mundo”, opina André Plihal, apresentador dos canais Disney.

Durante os últimos anos, Plihal teve o privilégio de dividir a bancada do programa Resenha ESPN com meu ídolo no futebol. Alex, ex-jogador do Coritiba, Palmeiras, Cruzeiro, Flamengo, Seleção Brasileira e que virou estátua na Turquia depois de atuar no Fenerbahçe, está por iniciar a carreira de treinador. Entre parar de jogar e começar a treinar, optou por fazer uma espécie de estágio na emissora paulista. 

“Queria apenas entender como aquelas pessoas chegavam e concluíam seus pensamentos. Foi muito em cima do que eu já imaginava. Na minha cabeça tem três futebol. O do vestiário, o da imprensa e o da torcida. ”

Não é à toa que um dos maiores camisas 10 de todos os tempos tem o apelido de “cabeção”. Sua visão em campo com a bola nos pés se entende na serenidade da fala com conteúdo. Conforme seu próprio relato, há diferenciações importantes – mesmo que as preserve – das concepções em relação ao mesmo esporte pelos três pilares que o sustentam: o vestiário composto pelos protagonistas, a imprensa que dá visibilidade ao espetáculo por eles produzido e por fim, ao público que consome este espetáculo.

Qualquer pensamento definitivo nesse texto ficará impreciso a partir da reflexão proposta por Alex, pois jamais preencherei uma das lacunas. Na imprensa, atuei alguns anos como repórter, em vestiário circulei uma década como assessor de imprensa do Grêmio, mas nunca bati um escanteio e nem sequer tive essa vontade. 

Infelizmente acredito que a visão que o mundo da bola tem da imprensa é bem mais rasa do que jornalistas sérios têm de quem milita com futebol. E explico: além de todos serem torcedores, o que nos iguala na saída, um jornalista leva vantagem ao construir ao longo da relação com fontes de todas as áreas: jogadores, ex-jogadores, treinadores, ex-treinadores, árbitros, dirigentes, cartolas falcatrua, empresários etc. Esse conjunto fértil alicerça um pensamento robusto sobre os comportamentos humanos e o futebol muito além das quatro linhas.

Estes conceitos, a meu ver, têm ainda uma importância tão grande quanto à compreensão tática nos dias de hoje. Atentar para a frieza dos números de esquemas táticas sob à ótica do que “só quem esteve la dentro para saber” é ignorar o calor das letras, desfecho das percepções jornalísticas. Ao passo que o boleiro, por ter cantado o hino de chuteira, não faz ideia do que é sentar diante de uma página de jornal em branco, ligar para uma fonte e não ser atendido, escrever um off nas coxas, trocar uma refeição por uma espera de uma entrevista etc. A função de comentarista entregue de bandeja aos jogadores aposentados é como ajeitar a bola para bater um pênalti que não foi. 

Temo que o linguajar da bola ganhe mais espaço do que vem ganhando. Nada contra, mas cada um na sua. Assim como o futebol que consumimos não diz respeito a dez por cento do futebol praticado no país com mais de 700 clubes federados, devemos nos atentar para o todo. Comunicação em grande escala em país como o Brasil se faz para as massas. E as massas são compostas por gente que torce para um time sem admitir objeções. É preciso reaproximar de uma outra forma estes dois eixos. E a imprensa tem papel importante nessa retomada. 

Quando eu recordo os trechos finais das rezas da oração da Ave Maria a pleno pulmões entre quatro paredes de um vestiário antes dos jogos, lembro de mentalizar várias vezes uma faixa estendida em algum estádio por aí e que adaptei uma das últimas frases antes do amém: “jogai por nós”.

Texto de João Paulo Fontoura.

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