Recentemente acompanhei uma entrevista do jornalista Mauro Cesar Pereira com o chefe da arbitragem no Brasil, o gaúcho Leonardo Gaciba. Sem fugir de nenhuma pergunta, me causou de fato espanto, uma resposta que nada tinha a ver com as questões técnicas que vinham sendo debatidas, mas sim com a contrariedade relatada pelo dirigente de boa parte dos árbitros sobre a profissionalização da função. E a explicação foi simples e óbvia, em um país como o nosso.
Em sua grande maioria os árbitros e os auxiliares têm outra ocupação, sendo o apito e a bandeira, instrumentos do bico e, desse modo, a remuneração nos jogos se acumula com a de outras atividades que exercem. Profissionalizar-se, portanto, além de aumentar a exigência, aumentaria a carga tributária e, assim, diminuiria a renda. Triste realidade.
Realidade que 10 vezes por rodada (somente na Séria A) atinge vinte times no futebol brasileiro, todos os jogadores e treinadores ali presentes e, claro, os milhões de torcedores de cada clube mundo afora. Tirando os exageros e os chiliques frequentes de muitos personagens dentro e fora de campo, penso ser compreensível algumas de suas indignações quando se defrontam com atuações patéticas, despreparadas e em alguns casos inconsequentes de certos apitadores.
O futuro de quem erra sem dolo e de quem avalia o erro ou o chilique de quem se enfurece com ele não se altera, ao contrário do de quem se sente lesado. Esse futuro pode ser continuar empregado na próxima semana, o de uma recompensa financeira por uma classificação ou, sei lá, até um título. Os juízes que erram, volta e meia, são suspensos com punições nebulosas – a famosa geladeira – de onde retornam e, naturalmente, reencontram os que por ele se sentiram vitimados.
A incapacidade de tentar entender ou a escolha pela minimização do choro alheio é praticamente impossível de tecer comparação para quem transita no futebol. Mas missão dada é missão cumprida. Não faço parte do exército do Omissão dada é Omissão cumprida. Diante de um fato que julgo injusto, em época em que a mordaça está de molho, ainda tenho tempo de tentar me fazer entender, com um episódio em particular para ilustrar.
Em 2014 atuava como assessor de imprensa do Grêmio em uma partida na Arena do Corinthians. O então técnico tricolor Luiz Felpe Scolari deixou o campo cuspindo marimbondo após a derrota que, segundo ele, continha erros da arbitragem de Ricardo Marques Ribeiro, conforme mostra o trecho da matéria do site globo.com da época.
Na saída do campo, após o apito final, Felipão se dirigiu a Wilson Luiz Seneme, que trabalhou na partida como delegado especial da arbitragem. Fez para ele uma reclamação sobre o G-4, o que também causou irritação no técnico Mano Menezes. Na entrevista coletiva, o comandante gremista confirmou o que disse.
– Disse para ele: “já estão escolhidas as equipes que vão à Libertadores”. Ele me chamou de prepotente, disse que não tem essa autoridade. Eu sei que não tem, mas faz parte – admitiu.
Eu estava a dois metros de distância do ocorrido. Vi esse e outros adjetivos proferidos pelo delegado do jogo que não deixou barato os desaforos do treinador gremista. Me aproximei de Seneme e o questionei se o que ele acabara de dizer também constaria em súmula, o que sem sombra de dúvida aconteceria em relação a Felipão. Dois dias depois, o STJD solicitou as imagens do ocorrido. Antes de conduzir Scolari para a coletiva, relatei a ele o que aconteceu comigo e, claro, a irritação por parte do delegado da partida ao querer saber quem eu era.
“Jamais um árbitro escreveria: ‘aos 10 minutos, ofendi o jogador fulano de tal’. Seria um atestado para ser punido. Até porque a realidade é que o árbitro deve ter um bom comportamento. Não deve ofender os jogadores. A relação do árbitro com os jogadores e vice-versa deve ser respeitosa. É lógico que dentro de campo as conversas são na linguagem do futebol”, observa o comentarista de arbitragem da Rádio Gaúcha, Diori Vasconcelos.
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O cenário poderia ser no mundo corporativo de empresas de qualquer ramo. No entanto, como o nosso HUB é o FOOT e penso que o a paixão do futebol está devidamente presente nas editorias de esporte dos veículos de comunicação, é para esse nicho que quero me dirigir e provocar uma hipótese.
Além dos jogos, os treinos – não contamos o período da pandemia – são em boa parte abertos, as entrevistas são diárias, os treinadores aparecem mais na TV do que os governantes do estado, restando a intimidade apenas ao vestiário. Diga-se de passagem, cada vez mais compartilhada em tempos de redes sociais e televisão dos próprios clubes.
Do outro lado, temos programas de debate de rádio, televisão e internet cada vez com maior espaço – o que torna jornalistas (e pseudos) cada vez mais expostos. O público para quem eles falam, porém não tem – e jamais devem ter a meu ver – acesso aos bastidores dessas produções. Neles costumam ser muito criticados os treinadores, jogadores e dirigentes quando seus objetivos não são alcançados por, segundo esses, erros de arbitragem.
Gente que faz parte do jogo e que possui capacidade de interferência no resultado de um esporte de pequena pontuação hoje em dia conta com a ajuda do VAR para tomadas de decisão. E mesmo assim, seguem as polêmicas e as insatisfações rodada após rodada. Dependendo do caso, não somente de quem sente na pele as consequências do erro – profissionais do clube –, mas também por quem eleva o tom da crítica quando se sente atingido intimamente pelo resultado, mesmo que esse não altere seu futuro no veículo onde trabalha.
A hipótese. Caro leitor, digamos que estejas diante do embarque para uma super viagem a trabalho ou, já que estamos falando de futebol, para um grande evento como a final da Champions. E no dia D na hora H, alguém te diz que não irás mais, seja por um carteiraço de algum chefe, seja por um QI diferente, seja por um problema burocrático ou por um erro de alguém que deveria se responsabilizar pela tua ida. De que forma reagirias?
De posse dessa imaginação, se coloque por um instante no lugar de quem se vê prejudicado pela arbitragem. Que aliás, nunca esteve tão exposta e protegida ao mesmo tempo. A chegada do VAR sem dúvida aproximou a justiça do resultado da disputa em campo, mas também escancara a cada domingo a própria incapacidade de boa parte dos sopradores de apito. Não é necessária imagem rodada em câmera lenta para enxergarmos. O olho humano, nesse particular, é muito mais astuto pois é capaz de interpretar determinadas atitudes.
Não recordo quais foram as consequências da confusão de Felipão naquela tarde em Itaquera. Preferi ver o que o juiz, o delegado ou quem quer que seja comentou a respeito no documento oficial da partida, respaldado pela sua presunção de veracidade, mas, talvez justamente por isso, nem sempre verdadeiro, pois ninguém em sã consciência produz prova contra si.
Na súmula da partida, publicada no site da CBF, não há relatos do árbitro sobre qualquer reclamação de Felipão. Reclamo eu, portanto, para não pecar pela omissão. Em que pese a triste notícia trazida por Gaciba contra a corrente da profissionalização, ficam todos os demais profissionais e principalmente o torcedor à mercê de quem, depois dos noventa minutos, troca o apito por uma caneta registrando o que lhe convém. Se assim achar justo.
Texto de João Paulo Fontoura.