Eu não me lembro quando comecei a ler quando criança. As lembranças são desconexas e sequer recordo a primeira palavra que li. O primeiro livro também não. Mas da segunda vez que aprendi, eu lembro de tudo. Afinal, eu já estava na faculdade de Educação Física e queria trabalhar com futebol. Foi quando eu aprendi a ler um jogo de futebol.
Eu desconhecia o que era ser analisa de desempenho e qual a função que o mesmo desempenhava. Eu desconhecia como ler o jogo.
Venho trabalhando como analista de desempenho há alguns anos. A minha função tem como objetivo coletar dados de forma qualitativa e quantitativa de treinos, jogos e adversários. Ou seja, ler constantemente as informações que o jogo propõe.
O importante no processo de análise é como você “lê o jogo”. É claro que, no sentido literal, não há como “ler uma partida”. Mas a conjugação deste verbo é fundamental para a compreensão do dia a dia de um clube. Sem essa leitura, que é um trabalho árduo e com métodos, não há futebol em alto nível.
Os passos para ler o jogo
O primeiro passo é coletar as informações, seja ela de treinos ou jogos. Para conseguir ler a informação, o analista precisa ver o todo, ou seja, precisa da imagem em câmera aberta para não perder nenhum detalhe das ações que estão ocorrendo.
O software (seja ele qual for) otimiza o tempo. Mas não é o software que faz alguém avaliar um jogo de forma mais coerente. Por vezes, otimizar o tempo faz com que você entre no automático. Podendo assim perder detalhes importantes das ações que ocorrem no jogo. Eu prefiro analisar o jogo no todo e me apegar aos detalhes. No meu trabalho, é isso que faz a diferença.
Não precisa de muita coisa. É papel e caneta na mão e entender o jogo. E fazer perguntas. Muitas delas.
Como decifrar o jogo? Quais são as perguntas que você deve fazer para conseguir analisar o mesmo? Se você trabalha para alguma instituição, qual o modelo de jogo que o treinador implementa dentro do clube? Quais os comportamentos que ele quer desenvolver em cada fase de jogo? Quais estratégias são utilizadas?
Quando analisamos um adversário, precisamos encontrar padrões nas ações de jogo. Além do mais, estamos analisando o desconhecido. Por isso devemos não somente visualizar um jogo, mas, quanto mais jogos conseguimos observar, mais completa será a análise.
Ler o jogo é você decifrar todas as ações e comportamentos que existem dentro do mesmo. Identificar ações defensivas, ofensivas, comportamentos individuais, por setor e coletivos. Todo jogo tem inúmeras nuances.
Não existe certo e errado dentro do processo de análise. Cada pessoa lê o jogo de uma maneira. Em algumas situações, podemos ter leituras semelhantes. Mas ler o jogo não é algo único.
Quando eu aponto para o gramado, qual a cor que você vê? Verde claro? Verde escuro? Verde esmeralda? A gente está vendo a mesma cor, mas o tom de verde é diferente, ou seja, a informação nem sempre é cem por cento igual a todos. Se dez pessoas vêm um jogo, ele pode ser igual. Mas ele também pode ser visto de dez maneiras diferentes. Não é a toa que em qualquer roda de conversa de futebol, sempre há discordâncias.
A análise tem que ser objetiva. Quanto mais objetivo, melhor. É preciso ser direto e trazer as informações para a realidade do trabalho. Eu preciso entender qual o beneficio que essa informação vai contribuir para a minha equipe.
Vou dar um exemplo: a posse de bola não é um dado relevante para a equipe que eu estou trabalhando hoje. Eu analiso a posse de maneira qualitativa, ou seja, somente observando o jogo. Pouco importa se é 70% ou 60%. Ficar pouco com a bola pode ser uma estratégia. Se a minha equipe ganha de 1 a 0 com 30% de posse de bola não significa que joguei mal. A minha estratégia pode ter sido defender para atacar. Olhar apenas a posse de bola não fala nada. Este resultado com esta posse de bola pode ser exatamente a estratégia de jogo que foi proposta durante a semana.
Olhar o dado cru é equivocado e não condiz com a realidade. Ao mesmo tempo, se você analisar o dado com a imagem, você vai entender qual a realidade do jogo. Talvez estes 70% de posse de bola do meu adversário seja na maioria no campo defensivo, com passes para o lado. Sem profundidade e sem atacar. Assim você consegue observar que a estratégia defensiva do meu time funcionou. O dado por si só não traz a informação completa.
Sempre que falo em análise de desempenho, gosto de citar um filme: Moneyball, o Homem que Mudou o Jogo. Não é sobre futebol. É sobre análise de dados no baseball. Na primeira vez que eu vi este filme, eu não pensava na correlação número-atleta. Hoje eu penso nisso. E eu revejo este filme até hoje. Pois, a cada vez que eu assisto novamente eu tiro detalhes mais expressivos que podem ser úteis no meu dia a dia. E assim é no futebol. Quanto mais jogos eu assistir, melhor eu vou ler o jogo.
Eu ainda não terminei de aprender a ler pela segunda vez. Muito pelo contrário. A cada partida realizada eu aprendo a leitura da partida de um jeito diferente. É curioso pensar que, se olhar bem a fundo, eu ainda não aprendi a ler.
Texto de Michele Kanitz.