Se tu quiseres saber o que pensa alguém, não o entreviste. Em que pese o exagero, há geralmente algo secreto escondido diante dos holofotes acesos, das câmeras ligadas e dos microfones apontados. Uma figura pública, por menor tempo que tenha para pensar, aciona em sua mente, talvez até involuntariamente, um botão de autopreservação em relação a algum pensamento seu que possa não ser bem compreendido por quem o ouve naquele momento. No esporte, não é diferente, pois os ídolos estão constantemente expostos.
Durante alguns anos atuando como repórter sempre em procura de uma novidade, do contraditório, do inesperado, do relevante, do notório; depois agindo uma década como assessor de imprensa em futebol e vários anos de terapia reafirmaram o que desconfiava. O exercício feito pelas pessoas públicas não difere muito do realizado intimamente por nós mesmos, reles desconhecidos. Controlar os pensamentos é algo impossível, mas o que fazer com eles não. Por isso, não tenho dúvida: a evolução das coberturas favoreceu demais os personagens de maior relevância no esporte. E por óbvio, reduziu demasiadamente a capacidade de o entrevistador ter acesso à espontaneidade do entrevistado.
Como, no entanto, dizer isso a um jornalista que é pago para perguntar? Cansei de ouvir que as respostas são sempre as mesmas porque as perguntas são sempre as mesmas. Isso quando não ouvi ridicularizações acerca de determinados questionamentos. Não sou daqueles que acham que não existe pergunta mal feita e sim resposta mal dada, mas como não saber a sensação de Pelé no milésimo gol sem que alguém o pergunte: “Qual a sensação? ”
Depois de saborear a autobiografia de Andre Agassi, li o que senti durante esse tempo de reflexão ser admitido por uma lenda do esporte mundial: a imprensa, meio, e o público, fim, constroem a imagem de um ídolo a partir não somente de sua performance esportiva, de seu comportamento, mas também de sua fala. E se sua fala não condiz com quem ele é, bom, temos um problema.
O tenista americano revela essa lembrança quando resgata uma incomodação retroativa à construção do personagem Agassi feita pela imprensa mundial: um cara reacionário, polêmico, audacioso, provocador, dentre outros adjetivos além do talento para o tênis. Ele não se reconhecia naquilo que falavam dele, como conta:
A cobertura factual do esporte ou de qualquer editoria – mesmo antes do atropelo das redes sociais – não tem muito tempo para assimilações profundas. Entrega-se através de falas literais as versões oficiais. A verdade, não necessariamente. Os motivos de isso acontecer podem ser vários. No caso de Agassi, uma incompreensão interna comum a qualquer ser humano, afinal de contas, sua vida é cheia de altos e baixos como boa parte das nossas também é.
“É exatamente isso. Como vamos conhecer sobre aquela pessoa sem que ela mostre aquele lado para a gente? (…) Ele era um cara super controverso, com rompantes de rebeldia nos anos 80 e com isso a imprensa tira as suas conclusões. Se o cara não se abre para dar uma entrevista e dizer quem realmente ele é, está sujeito a isso. É muito interessante a reflexão dele”.
O depoimento é de Karin Duarte, repórter do Sportv que em 2010, justamente ano do lançamento do livro teve a oportunidade de entrevistar o tenista no reencontro de Guga e Agassi alusivo a final do Master Cup de Lisboa, em 2000 quando o brasileiro venceu o americano e chegou ao topo do ranking mundial pela primeira vez na carreira.
Sou fã de tênis. Torcer para o Guga fez parte da minha adolescência e admirar vários tenistas de diversos estilos – e não somente o triunvirato atual de Nadal, Federer e Djoko – foi um privilégio. A biografia de Guga foi um rebobinar de fita de tantos momentos que fiquei de pé na frente da TV gritando “vamo Guga”, imitando o gemido “agããã” depois de uma esquerda inigualável no circuito até hoje e curtindo perfis diverso dos rivais: a sobriedade do russo Yevgeny Kafelnikov, a irritante frieza da lenda Pete Sampras, a técnica dos movimentos do australiano Patrick Rafter, os absurdos golpes de Andy Roddick, a perseverança de outro australiano Lleyton Hewitt (que eu tentava imitar quando tentava jogar), a marra do chileno Marcelo Ríos, os huevos dos argentinos Potro, Nabaldian e Canãs, como a entrega comovente de Meligeni.
Leia mais:
Coopetição, Futebol e Futuro, por Caio Derosso.
Como ler um jogo de futebol, por Michele Kanitz.
Inovação no futebol, uma questão de cultura, por Débora Saldanha.
O Agassi que eu acompanhei nessa época já era um Agassi “segunda geração”. Os cabelos compridos e os looks espalhafatosos já tinham dado lugar à careca e a um visual mais correspondente à elegância do tênis. O cara do passinho curto para pegar a toalha ou se deslocar lateralmente em quadra nunca esteve entre minhas preferências. Até conhecer Andre, o guri que odiava o esporte em que se tornou o número um do mundo. Uma criança que ouviu do pai a loucura de rebater um milhão de bolas por ano para triunfar. Um sujeito que (tentou) viver a vida em meio à cobrança, exposição, ódio, relacionamentos públicos, complicações familiares, fama, dinheiro, drogas e que desenvolveu uma capacidade emocional fora do comum. Justamente em um esporte que exige tanto da mente.
“Me marcou muito a fala dele sobre as dores que ele tinha, o conflito interno de não gostar daquilo, mas ao mesmo tempo ter nascido para aquilo. Deve ser muito louco isso na cabeça dele”, observa a Karin.
Virei fã incondicional e aponto como o melhor livro que li na vida a autobiografia de Agassi. Algumas motivações para essa escolha estão na minha humilde contribuição na “Biblioteca do Ruy” aqui no FootHub quando pude sugerir uma dica de leitura. Desde que li o livro alimento um inócuo desejo de um dia entrevistá-lo.
Não tive e nem terei a oportunidade da minha colega de profissão, mas diante de um cara que foi número 1 do mundo, caiu para a posição 140 e voltou ao topo, virou devoto de um esporte que odiou quando criança e que deixou um legado de amadurecimento, perdão e controle da vida, sobre tênis acho que pouco falaria com ele. A última frase de seu livro é um ensinamento tão valioso quanto à primeira resposta dada a Karin na entrevista de onze anos atrás.
– O que mudarias na tua vida?
– Voltaria para a escola. Foi a perda de uma vida que eu queria com família e amigos.
Ainda bem que há quem discorde do primeiro parágrafo desse texto. Bola dentro!
Dica de Leitura: Agassi – Autobiografia
Meus livros têm rabiscos de lápis nas páginas. Ao procurá-los para organizar o que escrever para este espaço, me senti talvez como alguém quando sacava no Agassi, andava dois metros para dentro da quadra e, um segundo depois tomava uma devolução mais rápida que o próprio pensamento no segundo anterior. O famoso contrapé sem entender o que aconteceu.
Mais ou menos assim, paralisei, pois somente agora percebi que faltaram dois rabiscos. Pior, as palavras onde eles deviam estar escritos em diagonal as destacando estão em caixa alta, o que reforça ainda mais meu erro. Na página 9, O FINAL inicia e na página 488 O INÍCIO encerra o melhor livro que li na vida.
Como se tornar o tenista número 1 do mundo nutrindo desde sempre ódio pelo esporte é uma pergunta que perpassa toda a narrativa da história de vida do americano. De vida porque o texto oferece muito, mas muito mais do que um reles amante da bolinha amarela mereceria ler.
Uma das sensações que ficam ao terminar a leitura é que não faltou nada a ser dito: a relação familiar, com a imprensa, com o espelho, com os holofotes, dinheiro, fama, drogas, rebeldia, saúde mental, jogo de simples, de equipe, de dor, dos ídolos, de jogar contra ídolos, de jogar contra si, religião, valores, medo, coragem, vícios, resiliência, Guga, Nelson Mandela, Sampras, Brooke Shields, Barbra Streisand, vitórias, derrotas, choro, bolas fora, bolas dentro e o desafio do tenista: jogar o tempo todo sozinho.
Tem mais, no entanto. Depois de dividir tudo isso com seu público e jogar na cara do leitor que possui em um restaurante em Nova Iorque uma mesa reservada para jantar com a esposa Steffi Graf, a última frase da obra, pelo menos para mim, parece um lindo e charmoso lob e não um eficiente e desaforado forehand. Todo o realismo do texto perde no tie break para o romantismo de quem o escreve.
DICA DE REPORTAGEM: BAÚ DO ESPORTE – LENDAS DO ESPORTE ANDRE AGASSI
Texto de JP Fontoura.