naomi osaka
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A bola dentro para abrir os olhos

No tênis, embora no futebol também, quando a imagem computadorizada da bolinha mostra 99% de seu diâmetro estar fora da linha, o 1% restante que toca a marcação justifica as duas mãos juntas com os braços esticados do juiz de linha apontando bola dentro. Peço essa licença matemática para entrar em um assunto de humanas, área que aprecio 100% mais do que as exatas. Por mais que a ciência evolua e contribua em todos os esportes, eles ainda são praticados por seres humanos. E sendo assim, é preciso parar um pouco quando algum comportamento de uma pessoa rompe a superfície da normalidade. É uma das teorias do acontecimento jornalístico.

No mesmo dia em que a japonesa Naomi Osaka anunciou ao mundo sua saída de Roland Garros, bem longe de Paris, em Florianópolis, um grande amigo meu e um dos maiores colorados que conheço, me questionava se eu poderia imaginar por qual razão nenhum dirigente do Inter apareceu para dar entrevistas após o empate contra o Sport na estreia do Campeonato Brasileiro. O que os dois episódios têm em comum? As maneiras de lidar com a imprensa, com o público; as tomadas de decisão e suas consequências incontroláveis.

Meu amigo justificou sua ira até então com a ausência de um dirigente para falar de posse de uma cultura muito gaúcha. Aqui, os dirigentes políticos participam do espetáculo antes e principalmente depois ocupando as ondas do rádio e as páginas de jornais e da internet com suas declarações. No curso de executivo de Fernando Carvalho existe esse debate. Nele, o profissionalismo vai de encontro ao comportamento tão bem conhecido no Rio Grande do Sul e que fez falta ao torcedor perto da madrugada de segunda-feira quanto era aguardada uma voz vermelha que pudesse vir a cobrar o treinador, o time e a arbitragem: “Na hora do pega para capar, eu quero a referência de coloradismo”, era a explicação que eu ouvia cedo da manhã.

Voltemos ao tênis, a Naomi e ao seu posicionamento. A jovem e campeã japonesa de 23 anos de idade, anunciou antes da competição que não iria seguir o protocolo do tradicional torneio francês. Assim como em todos os outros Grand Slams, atender a imprensa faz parte da programação. Em uma rede social, a tenista se dirigiu ao público:

“Frequentemente sinto que pessoas não têm consideração pela saúde mental de atletas, e isso parece muito verdadeiro sempre que vejo uma entrevista coletiva ou participo de uma. (…) Eu não dar entrevistas não é nada pessoal com o torneio e alguns jornalistas que me entrevistam desde que eu era jovem, então tenho uma relação amigável com a maioria deles. Porém, se as organizações acham que podem continuar dizendo “dê entrevista ou seja multada” e continuar a ignorar a saúde mental dos atletas que são a peça central de sua cooperação, então eu só posso rir”.

Naomi Osaka

Para quem convive ou já conviveu com alguém que tenha qualquer dificuldade psíquica, certamente o riso não é a expressão que brota do rosto ao terminar a leitura do desabafo de Naomi. A mim, antes de avaliar o conteúdo, valorizei o gesto. A coragem de uma mulher dessa idade levantar uma questão tão delicada no caso dela também de ordem íntima –, encarar uma instituição consagrada e trazer à tona o assunto é enorme. Certamente ela leu a biografia de Agassi, tenista americano que durante toda a carreira lutou contra sua própria mente para ser um vencedor também fora das quadras.

A manifestação da tenista repercutiu no mundo do tênis. Deveria, no entanto, ir além da elite que o pratica e o consome, pois, a interrupção da ordem natural das coisas ali proposta está bem longe do que o simples fato de não dar a cara a tapa e ser cobrado. Fernando Meligeni, ex-tenista profissional e com experiência também na imprensa se manifestou a respeito:

“Nem de perto defendo a imprensa em tudo. Já tive brigas pesadas. Acho que muitas vezes exageram. Quem não lembra quando cometi o erro de acertar um torcedor acidentalmente em Portugal e fui chamado de BAD BOY por jornais e canais e destruído pela mídia sem sequer dar uma entrevista ou me defender. Achei uma baita sacanagem. Exageraram. Se aproveitaram. Jogaram na minha cara que eu era argentino naturalizado. Mas seria certo cortar relações com a imprensa em geral? Lógico que não. ”

Fernando Meligeni

Uma das coisas que mais aprecio no tênis é a forma como as finais dos grandes torneios são tratadas. Assim que acaba a partida, a organização rapidamente prepara a cerimônia de premiação enquanto os tenistas se reidratam, um lambe as feridas e o outro inicia o degustar da conquista. Logo após os troféus entregues, um mestre de cerimônias de microfone em punho se dirige aos atletas e os coloca em contato com o público presente e do sofá de casa. Sempre me impressionou como são recheados de conteúdos os discursos. Valores como família, dedicação e ética raramente ficam de fora dos agradecimentos emocionados.

Lembro desse particular do tênis porque quando soube quem é Namoi Osaka anos atrás, vi quando do seu primeiro título no Grand Slam e os quão emocionantes foram suas palavras, uma vez que os asiáticos muitas vezes parecem frios diante das sensações. Pouco acompanhei sua carreira, soube que no ano passado usou durante alguns jogos máscaras com nomes de pessoas vítimas de racismo nos EUA e agora sua figura não somente como desportista ganha luz novamente.

Na segunda-feira, após ser avisada das consequências de sua tomada de decisão em não comparecer nas entrevistas, depois de vencer na estreia de Roland Garros, Naomi escolheu deixar o torneio. Quando fazemos escolhas, renunciamos alguma coisa. Novamente ela usou as redes sociais para se manifestar:

“A verdade é que eu tenho sofrido longos períodos de depressão desde o US Open de 2018 e eu tive muita dificuldade em lidar com isso. Todos que me conhecem sabem que sou introvertida, e todos que me viram em torneios notam que eu geralmente estou com fones de ouvido porque eles ajudam a aplacar minha ansiedade mental. Embora a imprensa especializada em tênis tenha sempre sido carinhosa comigo (e eu quero me desculpar sobretudo com os jornalistas legais que eu possa ter magoado), eu não sou uma oradora natural e tenho enormes crises de ansiedade antes de falar com a imprensa. (…)  Eu vou me afastar um pouco das quadras agora, mas quando for a hora certa eu quero conversar com os executivos do circuito para tornar as coisas melhores para os jogadores, a imprensa e os fãs. De qualquer maneira, espero que todos estejam bem e seguros, amo vocês e nos vemos”.

Naomi Osaka

A sensibilidade da postagem desnuda, a meu ver, qualquer tipo de insinuação que possa ser feita em relação às intenções da tenista. Embora seu relato seja pessoal e tenha escolhido dar às costas aos jornalistas momentaneamente, na verdade não está. Ao contrário, os abastece com notícia e inclusive expõe sua vulnerabilidade diante deles e adianta que o afastamento não é definitivo.

O comportamento de uma jovem deve deixar muito marmanjo uniformizado ou fardado com vergonha. É preciso ter discernimento e coragem para agir assim e admitir percalços no caminho. Se há quem enxergue que o conjunto das atitudes e as consequências podem arranhar 99% de uma carreira já vitoriosa aos 23 anos de idade, eu fico com o 1%. Bola dentro de Naomi.

Texto de João Paulo Fontoura.

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