A partir de determinado momento de minha vivência pessoal, em qualquer coisa que fizesse, principalmente na formulação de teses e estratégias para os processos judiciais onde lidava, levava em consideração para sim e para não, ocorrências e situações do passado. Acorria-me sempre a lição eterna, e sempre atual, do oráculo Cícero -( in De Oratore – 55 AC)- segundo a qual a “história é testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da memória, mensageira do passado”!
Agora quando me deparo com o computador a discorrer sobre futebol, o velho cacoete de buscar a história se faz presente e eventos e ocorrências percebidos no passado voltam à tona, para construção de teses para discorrer sobre fatos de hoje.
Nessa Copa do Catar de 2022, mesmo em limitados 5 dias de realização, várias coisas chamam atenção e merecem comentários, alguns desairosos -( Argentina e Alemanha)- outros airosos -( Espanha, França, Canadá, Japão, Arábia Saudita).
Ao observar os imberbes atletas espanhóis, mais parecendo grupo de escoteiros saídos da puberdade, vendo na tela as suas fisionomias permeadas pelos acordes do belo hino ibérico a anteceder a partida contra a Costa Rica, imaginei seleção em fase preparatória para futuras competições, buscando assentar jovens nomes no sempre volátil ambiente futebolístico.
Ledo engano! Foi a bola rolar e viu-se um onze harmônico, envolvente, com futebol dominante, criativo, com mutações de sistema e posicionamento, com atletas a um tempo viris e habilidosos, a outro tempo competitivos e com compreensão tática. Disposta num 4-1-3-2 mutante, sem centroavante fixo, aí aparecendo Asensio, meia ponta de origem, com ampla movimentação, tendo volante posicionado, o veterano Busquets, com dois meias extraordinários Pedri e Gavi, que jogam de área a área, com ações ofensivas de armação e conclusão e ações defensivas de contenção e desafogo posicional, extremas com incursões centrais – Olmo e Ferran Torres -( o genro do homem)- e presença nas conclusões.
Defensivamente bem composta, linha de quatro, zagueiros rápidos e com ótima saída, sobressaindo Rodri – (volante com Guardiola no Manchester City) Laporte, com os conhecidos Azpilicueta e Jordi Alba pelos lados, ambos apoiando com contumácia.
Chamou atenção, mesmo considerando o adversário Costa Rica, frequentador de linha secundária no concerto mundial, o volume apresentado, as variações ocorridas durante a partida e a forma coletiva de superar a dificuldades impostas pelo adversário que indicam vida longa na competição ora em disputa e “porvir venturoso “em futuras disputas.
Em determinado momento lembrei duas situações do passado – (a história inserida na análise)- a Laranja Mecânica, Seleção holandesa da Johan Cruyff de 1974 na Alemanha, excepcional, e da Fúria Espanhola de Butragueno em 1986 no México.
A Fúria Espanhola de 1986 no México, em termos de atuação fora da curva, limitou-se a partida contra a Dinamarca, no evento tida como candidata ao título, por 5 X 1 , quando Butragueno anotou 4 gols em surpreendente vitória ibérica. Na sequência, quando a expectativa cresceu, os espanhóis foram eliminados pela Bélgica nas quartas de finais daquela Copa, vencida pela Argentina de Diego Maradona.
Por isso prefiro lembrar, para comparar, o Carrossel Holandês de 1974, na Alemanha, que chegou a final e foi estrategicamente vencido pela divisão panzer germânica, com Mayer, Breitner, Overath, Beckenbauer e Gerd Muller. Vejo muitas semelhanças entre o time de imberbes espanhóis da atualidade e os surpreendentes holandeses da década de 70, principalmente no esquema e forma de jogar.
Lá como aqui, os holandeses dispunham-se em 4-1-3-2, com Suurbier, Rijsbergen, Haan que sobrava como zagueiro líbero cobrindo os 3 demais defensores, e Krol, Jansen como volante central cobrindo os lados e a frente da área, Neeskens como meia volante, transitando de area a area nela ingressando como atacante em posição ofensiva, Van Hanegam como meia esquerda volante, mais cadenciado mas também intenso no ir e vir e na forte marcação pela diminuição do espaço outorgado ao adversário.
Como meia central dublê de centroavante, figurava o inesquecível craque de bola, Johan Cruyff -( Jogava com a camisa 14 quando os números eram padrão de 1 a 11)-, rei da geração europeia daquela década, móvel, contundente, habilidoso, exímio assistente além de artilheiro. Movia-se na frente como forma de abrir caminhos e espaços generosos para os ingressos diagonais dos pontas Rep pela direita e Resenbrink pela esquerda, afora permitir com seus deslocamentos cerebrais que, useiro e vezeiro, Neeskens rompesse área adentro como verdadeiro número 9.
A tônica da equipe era a vigorosa marcação pressão ao homem da bola, encurtando espaços e retomando o balão de forma muito rápida, modelo aperfeiçoado anos depois pelo FC Barcelona, tendo o próprio Cruyff como introdutor do método, agora como treinador. Como processo marcante na época, ao pronunciamento de uma palavra código pelo zagueiro líbero Hann, havia uma disparada de todos os jogadores holandeses a partir dos defensores em direção ao adversário detentor da bola, feito um verdadeiro carrossel sufocando-o, impedindo-o de prosseguir e logo retomando as ações, partindo em contra ataque com supremacia de 7 a 8 jogadores contra a defesa do rival, muitas vezes conseguindo gols surpreendentes.
Bom assinalar que essa expressão coletiva fantástica, coordenada, linda de ver, somente foi possível efetuar, enquanto a regra do impedimento tornava fora de jogo qualquer atleta do adversário que estivesse adiantado, nao somente aquele que participa do lance, como ocorre hoje.
Abro aqui um parêntesis para lembrar com alegria, o ano de 1976 quando o S. C. Internacional, com o ingresso do zagueiro Marinho Peres, vindo do Barcelona e participante da Copa da Alemanha em 1974 pela Seleção Brasileira, passou a utilizar essa prática e muitos jogos do título nacional conquistado naquele ano, tendo Rubens Minelli como técnico, foram vencidos com diversos lances assim concebidos, os quais aqui eram denominados “sufoco”, com o mesmo Marinho a pronunciar a palavra senha.
Arrematando, embora seja cedo para conclusão definitiva, pela amostragem de apenas um jogo, com adversário limitado, vislumbro na Seleção Espanhola de hoje, muitos traços do Carrossel Holandês que marcou época nas copas de 74 e 78, pelo posicionamento dos atletas, características de marcação, movimentação de meio campo e ataque e qualidade individual dos jogadores todos voltados para a ação coletiva, o que permite a ideia de que trata-se escrete que chegará longe nessa Copa do Catar.
É verdade que por falta de maturidade, por ser ainda uma equipe muito leve, pela juventude de seus protagonistas, talvez não consiga suplantar adversários mais fortes, mas já deu claros indícios de que avançaram no certame, mormente pela comparação com os adversários até aqui observados, sedizentes favoritos, que atuaram contra rivais de menor conceito, onde cometeram atuações de nível mais baixo.
O tempo dirá se esse presságio se confirmará. Aguardemos os próximos jogos.
Texto de Fernando Carvalho.