Não é fácil entender que o Barcelona, clube extremamente vitorioso nas últimas décadas, enfrenta um momento tão complicado na sua história, sobretudo para a geração de torcedores formada na década de 90 e que se acostumou com os louros dos títulos colecionados por parte da agremiação Blaugrana até o presente momento.
A recente eliminação do Barcelona diante do Paris, em confronto válido pela fase de oitavas de final da Champions League 20/21, não só exsurge como a sexta eliminação consecutiva na competição europeia, como também robora o momento sensível mencionado, demonstrando que a paciência para efetivar uma reformulação, a médio ou longo prazo, será mais do que essencial.
Nos últimos anos, a megalomania, presente nos mandatos de Sandro Rosell e Josep Maria Bartomeu, regeu a gestão blaugrana e fez com que o leme do clube fosse manuseado contra a maré da sua própria filosofia, prática que, obviamente, desencadeou rupturas na evolução do desempenho em campo, equívocos de planejamento e a vulneração da essência futebolística inata à agremiação esportiva.
Imperioso aduzir que a reformulação de um time extremamente campeão nas últimas décadas, liderado por um dos melhores jogadores da história, faz-se necessária há algum tempo e, diante dos contornos financeiros do atual momento, carece ainda mais do entendimento dos torcedores culés, os quais, é importante que se diga, precisarão deixar de lado a memória afetiva de um time com um futebol dominante, vistoso e peculiar, como se viu, para compreenderem as limitações impostas pelo atual momento político instável do clube.
No entanto, em observância ao peculiar traço cultural da agremiação, fica aclarado que as mudanças jamais poderão ser pensadas e até mesmo orquestradas sem estarem fundadas na essência da agremiação culé e, consequentemente, no modelo de jogo característico outrora praticado, afinal, seguindo a linha de um brocardo antigo, consabido e entoado pelos próprios torcedores blaugranas na região da Catalunha, o Barcelona é “mais que um clube”.
A fim de tornar compreensível o contexto atual do Barcelona, cabe, através de apertada síntese, debater como o clube, seja em função de medidas gerenciais desarrazoadas ou da pressão externa exercida contra a agremiação em face das próprias conquistas, passou a renunciar sua própria essência para obtenção de sucesso.
Nos períodos compreendidos entre os anos de 2003-2013 e 2017-2020, o Barcelona fora dirigido por diversos comandantes e, mesmo assim, não deixou de lado os princípios de jogo decorrentes da sua cultura futebolística, quais sejam a utilização da aprendizagem obtida com a realização dos rondos no campo, a execução da amplitude, a posse de bola como meio para alcançar objetivos, a cultura do jogo posicional, a obstinada busca por superioridades dos mais variados tipos no plano tático e, por fim, a perseguição incessante pelo terceiro homem livre.
A Herança holandesa, desinente dos trabalhos dos excepcionais Rinus Michels, Johan Cruyff e Van Gaal, certamente foi a inspiração para que Frank Rijkaard e Pep Guardiola, ambos ao seu próprio modo e mesclando suas ideias com a filosofia institucional do clube, formulassem os seus conceitos sobre o futebol aplicado nas equipes comandadas pelos mesmos em cada período (2003-2012), trazendo à baila, desde que chegaram ao clube, a potencialização da cultura posicional intrínseca ao Barcelona, bem como a forte utilização de atletas forjados nas canteiras do clube Culé.
Mesmo com as singularidades de cada treinador, o que ocorre naturalmente em função da formação pessoal e profissional de cada um, o culto ao jogo posicional, também chamado, acertadamente, por Juanman Lillo, de jogo de localização, esteve presente nos trabalhos de Frank Rijkaard (2003-2008), Pep Guardiola (2008-2012), Tito Villanova (2012-2013), de Quique Setién (2020) e, em determinadas fases do jogo, ainda que a maior parte da metodologia de trabalho destoasse da premissa comum aos outros, do próprio Valverde (2017-2020), ficando nítido, portanto, que a essência institucional do clube se imiscuiu aos entendimentos dos técnicos supracitados.
Cabe informar, apenas a título de acréscimo, que alguns dos técnicos mencionados, a exemplo de Pep Guardiola, Tito Villanova e Quique Setién, não só guardam semelhança quanto à filosofia adotada nos anos em que se sucederam os trabalhos destacados, como também em relação à organização estrutural base comumente praticada, tendo em vista que a formatação preferencial das equipes em questão se deu, majoritariamente, no 1-4-3-3, ampliando, assim, o grau de semelhança entre os trabalhos exercidos.
No entanto, muito embora a interseção principiológica reste aclarada diante dos trabalhos trazidos ao debate, não se pode olvidar que, em determinado período, a dissonância entre a filosofia do clube, ideias de treinadores escolhidos e decisões gerenciais errôneas minaram o desenvolvimento do projeto esportivo do Barcelona, gerando rupturas na essência Barcelonista e, por conseguinte, culminando nas consequências que, sim, ainda são sentidas até o presente momento.
A primeira quebra principiológica relacionada ao modelo de jogo blaugrana e ao entendimento do seu comandante se dá, na temporada 2013/2014, com a chegada de Gerardo Martino, o qual, importante aduzir, ao invés de adequar os seus conceitos ao contexto do clube, intentou estabelecer um estilo calcado em contra-ataques e, consequentemente, diverso da cultura já estabelecida, consubstanciando fase que o próprio técnico argentino, enquanto comandava a Seleção Mexicana, qualificou como a pior da sua carreira.
Faz-se necessário pontuar, ainda, que o trabalho de Luis Enrique (2014/2017), em especial, não obstante tenha sido exitoso em termos de títulos, também exsurgiu como um rompante no que diz respeito à diretriz futebolística institucional do clube culé, apostando em um jogo mais direto e vulnerando o coletivo em prol das individualidades que compunham o tridente de ataque à época (Neymar, Suaréz e Messi), fatores causadores de um agravamento da crise de identidade já existente e cujos efeitos, inclusive, ainda se mostram presentes nos tempos atuais.
Merece ser observado, em paralelo ao desacorde entre a filosofia blaugrana e os ideais dos treinadores escolhidos, quais sejam Gerardo Martino e Luis Enrique, que as canteiras, tão utilizadas em momento pregresso e intrinsecamente vinculadas à essência Barcelonista, responsáveis pela produção de nomes como Xavi, Iniesta, Busquets e outros tantos, frente ao processo de rompimento com a cultura futebolística da agremiação, passaram a ser negligenciadas pelos mandatários que se sucederam, dando lugar as contratações ‘estelares’, a exemplo de Dembélé e Griezmann, cuja chegada guarda relação, tão somente, com a pressão suportada pelo clube em decorrência da necessidade de manutenir os resultados vitoriosos pregressos, não existindo, contudo, qualquer conexão com um eventual projeto de reformulação futebolístico pautado nas características próprias do Barcelona.
Não se pode perder de vista, para além das questões táticas observadas no campo, que a atividade gerencial pouco assertiva, executada ao longo dos últimos anos e marcada por polêmicas degradantes, contribuiu em desfavor da essência futebolística institucional do clube catalão, haja vista a adoção de uma série de decisões que não agregaram para o desenvolvimento do jogo intrínseco à cultura do clube, soando, portanto, no mínimo, imprudente culpar qualquer treinador, de maneira específica, pela crise identitária na qual o clube está inserido hoje, mesmo porque a escolha do comandante é realizada por aqueles que ocupam a ponta do vértice da estrutura sistêmica.
Como se não bastasse a crise identitária e os inúmeros problemas gerenciais do clube, há de ser mencionado que os efeitos desinentes da pandemia agravaram, ainda mais, o déficit financeiro da agremiação culé, tendo em vista que a maior parte dos rendimentos auferidos decorrem da bilheteria e da visitação das suas dependências, opções impossíveis de serem viabilizadas no mercado de consumo diante do contexto pandêmico vicejante.
Todos esses fatores, em conjunto, tornaram a atmosfera Barcelonista nociva, a ponto do maior ídolo do clube descredibilizar a gestão e o projeto esportivo supostamente existente, anunciando, de forma expressa, através do tão falado burofax, o desejo de respirar novos ares.
A chegada de Ronald Koeman, ídolo e peça fundamental no título da Champions 91/92, surgiu como um retorno aos trilhos para Barcelona e, também, um lampejo de esperança, posto que, nos primeiros meses de trabalho, se observou a valorização das canteiras com a utilização de Oscar Mingueza, Ronald Araújo e até de Riqui Puig, a prospecção do mercado por jovens jogadores alinhados ao estilo de jogo blaugrana, a exemplo de Pedri, Trincão e Dest, bem como o respeito aos princípios futebolísticos atrelados ao clube culé, mesmo diante das peculiaridades inatas ao entendimento do técnico holandês acerca dos princípios que sua equipe deve praticar em todas as fases do jogo.
Curioso mencionar que, nos últimos jogos, incluindo a recente e brilhante vitória no confronto travado com a Real Sociedad, Ronald Koeman, visando obter superioridade na primeira fase de construção e potencializar o controle da posse de bola, passou a utilizar o sistema com três centrais, o qual, importa pontuar, também fora visto no time blaugrana comandado por Cruyff e em que o ex-zagueiro tinha papel fundamental, mudança significativa, inspiradora e que, provavelmente, indica o resgate de uma das fontes mais relevantes e vitoriosas da história Culé.
Há de se colocar sob relevo, ademais, em face do êxito da sua gestão no período compreendido entre 2003 e 2010, a recente eleição de Joan Laporta para o cargo de presidente do Barcelona, pois o mandatário é tido por muitos como o profissional capaz de criar horizontes para o clube culé, de assegurar um planejamento esportivo robusto e, acima de tudo, de tornar possível o sonho de manter Lionel Messi no Camp Nou, suplantando, assim, as fissuras administrativas deixadas por Josep Maria Bartomeu, Sandro Rosell e companhia. Indubitável que os torcedores acostumados com o período vitorioso do Barcelona não se sentem bem com o momento atual e o aspecto emocional dá margem para manifestação do imediatismo, mas, de qualquer sorte, diante do promissor início de Ronald Koeman e da recente eleição de Joan Laporta, faz-se imprescindível o decurso do tempo para assentar o projeto esportivo do clube, na medida que, só assim, será possível o regresso de um Barcelona com modelo de jogo condizente com as suas diretrizes culturais e capaz de disputar, honrosamente, qualquer competição do cenário europeu.
Texto de Mauro Maia, de Los Futebólicos.