Em janeiro de 2018, escrevi uma matéria sobre a Arábia Saudita ter liberado a presença de mulheres nas arquibancadas de futebol. Lembro que chorei ao escrevê-la. Eu me recordo de cada detalhe da primeira vez que assisti a um jogo dentro do estádio e era simplesmente impossível para mim imaginar um mundo em que eu fosse proibida de fazer isso.
Na minha família, somos três filhas apaixonadas por esporte e sei que minha irmã mais nova tem poucas lembranças de quando não frequentava as arquibancadas. Mas aquilo me fez pensar em tantas coisas que as mulheres eram – e ainda são – proibidas de fazer, que vão muito além do esporte.
Segundo levantamento do Banco Mundial divulgado em fevereiro de 2021, as mulheres possuem, em média, 75% dos direitos legais concedidos aos homens em suas vidas profissionais. Hoje, 104 países ainda impedem que as mulheres realizem certas atividades simplesmente por gênero.
Alguns exemplos: no Brasil, mulheres não podem ser contratadas para serviços que demandem “o emprego da força muscular superior a 20 (vinte) quilos para o trabalho contínuo, ou 25 (vinte e cinco) quilos para o trabalho ocasional”. Na Argentina, aqui ao nosso lado, mulheres não podem trabalhar na produção de licores e destilação de álcool. Na Rússia, existe uma lista de 456 tipos de trabalho que elas são proibidas de realizar. A lista nasceu em 1974, mas virou lei só no ano 2000.
E essas são proibições que dizem respeito “apenas” à vida profissional das mulheres. Se analisarmos dados sobre violência doméstica, por exemplo, leis que protegem as mulheres só foram promulgadas no ano passado no Kuwait. A nossa Lei Maria da Penha não tem mais de 15 anos e há várias lacunas que dificultam a proteção. Na Rússia, o maior país do mundo, agressões cometidas por maridos contra suas esposas e filhos são legalizadas, desde que o episódio “não se repita mais do que uma vez no ano e que a mulher e as crianças não precisem ser hospitalizadas”.
Obediência, estupro e divórcio
Além da violência, as mulheres devem obediência aos seus maridos em vários países, como no Sudão, no Iêmen, na Nigéria e no Afeganistão. Na República do Congo, elas só podem assinar contratos, seja para contratar um serviço telefônico ou alugar uma casa, se o marido estiver presente. O mesmo acontece na Nicarágua, em Guiné e em Mali.
E sim, a obediência diz respeito também a satisfazer o marido sexualmente. Nas Bahamas, por exemplo, um homem pode ter relações sexuais sem consentimento com sua esposa, se ela for maior de 14 anos – em Singapura e na Índia, a lei é similar, mas as idades mínimas são 13 e 15 anos, respectivamente.
Os próprios direitos de divórcio não são iguais para homens e mulheres em muitos lugares no mundo. Segundo o estudo do Banco Mundial, no Chile, em Portugal, em Porto Rico e em Ruanda, mulheres divorciadas não tinham os mesmos direitos que os homens de casarem novamente até 2020. Em Israel, apenas homens têm direito de pedir pelo divórcio.
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Machismo, preconceito e respeito: precisamos conversar sobre a presença da mulher no vestiário de futebol, texto de Michele Kanitz.
As proibições no esporte
Com a alta da visibilidade que o futebol feminino vem recebendo no Brasil, fala-se muito sobre a lei que proibia as mulheres de praticar o esporte até 1979. Hoje, as brasileiras podem atuar em qualquer modalidade e nas últimas Olimpíadas – Rio 2016 – elas eram 45% da delegação brasileira. Mas essa não é a realidade em todo mundo.
Para metade das mulheres do mundo, o futebol, por exemplo, está fora do alcance. Em todo o Oriente Médio, África, América Latina e Ásia, milhões de mulheres enfrentam barreiras legais, culturais e religiosas que as proíbem de entrar em campo.
A Arábia Saudita teve mulheres na sua delegação pela primeira vez nos Jogos Olímpicos de 2012 – ano em que houve participação feminina em todas as modalidades. Porém, de volta para casa, a prática esportiva é quase proibida para elas. Lá, os espaços são divididos por gênero; não há aulas de educação física nas escolas para meninas e os locais de esporte são restritos aos homens, assim como as 150 federações esportivas do país. Entre 2009 e 2010, todas as academias femininas foram fechadas, o que resultou no aumento do índice de obesidade entre as mulheres.
No Qatar, próxima sede da Copa do Mundo masculina – e que vem recebendo vários torneios esportivos nos últimos anos, as mulheres só ‘ganharam’ uma confederação no começo dos anos 2000 e elas puderam participar das Olimpíadas só em 2012. No começo de 2021, inclusive, o país tentou proibir que atletas de vôlei de praia usassem biquíni no Circuito Mundial da categoria.
As mulheres egípcias relatam que os membros da família costumam manter as meninas longe do esporte – principalmente futebol, dizendo-lhes que é haram, proibido no Islã. Em outros países africanos, como a Uganda, as mulheres não podem jogar futebol pela falta de sutiãs esportivos e absorventes, além do mínimo de interesse em financiar o esporte feminino.
Apesar dessas proibições que tantas mulheres ainda precisam enfrentar pelo mundo, o Comitê Olímpico Internacional tem trabalhado para acelerar o equilíbrio de gênero nas competições. O número de mulheres competindo aumentou significativamente – de 34 por cento do total em Atlanta 1996 para um novo recorde esperado de 48,8 por cento em Tóquio 2020. Além disso, o Comitê tem o compromisso de alcançar a plena igualdade de gênero para os Jogos Olímpicos de Paris 2024.
Tóquio 2020/2021 terá uma representação completa de gênero em todas as 206 equipes. O COI também mudou suas regras para permitir que um atleta do sexo masculino e uma do sexo feminino carreguem juntos sua bandeira durante a Cerimônia de Abertura, “enviando uma mensagem poderosa ao mundo sobre a importância da igualdade de gênero dentro e fora do campo”.
Passos de tartaruga, mas sempre em frente
Costumo dizer que quando os direitos não são para todos, eles infelizmente tornam-se privilégios. E é uma pena que o esporte seja ainda proibido para as mulheres em tantos lugares do mundo.
Entretanto, é preciso enxergar o copo meio cheio para manter a esperança (e a saúde mental): em 1900, nas Olimpíadas de Paris, apenas 2,2% dos atletas eram mulheres. Nos jogos de Tóquio, seremos quase 49%! E este número só tende a crescer.
Desde 1972, as Universidades estadunidenses são obrigadas por lei a destinar pelo menos 40% das verbas estudantis a esportes praticados por mulheres. Em 2020, as jogadoras de futebol começaram a receber a mesma quantia que os homens pelas diárias na Seleção Brasileira. Inclusive, pela primeira vez o futebol feminino é coordenado por duas mulheres na CBF.
Atualmente, a atleta mais bem paga do mundo é Naomi Osaka, tenista afro-asiática, filha de pai Jamaicano, e no tênis, as premiações das principais competições são iguais para homens e mulheres. No Brasil, premiações iguais é lei em competições patrocinadas pelo Governo.
Para além do esporte, o estudo do Banco Mundial citado no início desse texto conta que, desde 2019, 27 economias globais têm promovido reformas legislativas para aumentar a igualdade de gênero. Ainda precisamos de mais mudanças? Claro, mas 27 é melhor que 0!
Não acredito que devemos parar de lutar por direitos iguais para todas as mulheres – seja no esporte, nas leis trabalhistas ou matrimoniais. Devemos gritar cada vez mais alto, pois já sabemos que juntas isso é possível. Porém, volta e meia, faz bem parar e apreciar tudo que foi conquistado até aqui para renovar a esperança de que vamos conquistar muito mais.
Texto de Júlia Vargas.