Viver em Salvador é um privilégio. Digo isso pela experiência de chegar em terras soteropolitanas com a visão interiorana de quem teme o novo, ou melhor, o desconhecido. Estar na cidade é como participar, ao lado de milhões de pessoas, de uma obra repleta de emoções, perigos, paisagens e porque não de referências que se atualizam a cada dia, a depender de quem protagonize a história.
Observar a orla, mais especificamente do Rio Vermelho, bairro famoso por carregar uma alma boêmia me faz refletir sobre diversos cenários e apesar da beleza do local, o que mais chama atenção, pelo menos para mim é passar por ali e ver os pescadores logo cedo a trabalhar, os meninos correndo para brincar, a eterna sensação de que algo grande está para acontecer. Estas características me remetem muito a Jorge Amado e aquilo que ele escrevia. Afinal, não é coincidência que ali esteja o monumento que o homenageia junto com a sua esposa Zélia Gattai e o cachorro do casal.
É justamente neste cenário que, como citei acima, surgem as referências para expor alguns destes pensamentos. A bola da vez é que nada nem ninguém tem uma só faceta. Cada pequena coisa que existe no nosso planeta pode ser observada por diversos pontos e eles apresentarão perfis completamente diferentes, porém em completa harmonia (ou não). A origem se compartilha.
A origem se compartilha. O simples, com a sua beleza e altivez sempre gerando paixões e o complexo, com a sua sedução, gerando encantamento e curiosidade. Coexistem e se misturam, assim a vida se manifesta.
Revisitemos a obra de Jorge Amado denominada “Capitães da Areia”, por exemplo. Meninos forjados nas ruas de Salvador, vivenciando tudo aquilo de ruim que a cidade tem para oferecer. Sem comida, sem família, sem assistência. Neste contexto, o que sobra é a luta pela sobrevivência, evidenciando os sentimentos mais primitivos.
Apesar da situação, aproveitam da inteligência, da destreza e da criatividade para encontrar situações em que furtos fossem cometidos nas casas mais nobres. Joias, porcelanas, artigos de luxo, tudo isso serviria para que eles se alimentassem, se vestissem e de certa forma, também aproveitar o que de bom a capital baiana disponibiliza.
Porém em determinado momento da história, o Padre José Pedro, talvez o único a entender os jovens, traz para a festa da igreja um carrossel. Carrossel este que simboliza o retorno dos protagonistas à sua posição de criança.
O brinquedo consegue emergir os sentimentos mais puros e infantis dos Capitães, demonstrando um lado que a sociedade negligenciou e fez possível os delitos que eles cometiam. Não dá para dissociar a estratégia dos crimes com a criatividade da brincadeira, surgiam do mesmo lugar.
De igual maneira e puxando para o tema que se costuma falar por aqui, um time vencedor também se configura em várias facetas que precisam se equilibrar para suceder da melhor forma. O nosso futebol sempre foi baseado na inventividade, na alegria em jogar, no fugir dos padrões de ação. Tudo isso sem renunciar a estratégias e táticas bem estabelecidas.
É este o maior desafio de Tite como treinador da seleção. Temos jogadores que exalam a pureza das crianças: Neymar, Vinícius Júnior, Paquetá, Cebolinha. Encontrar o equilíbrio e um modelo que os permitam ser quem são é indispensável, assim como manter uma organização que os dê segurança. O caos organizado, já citado por aqui, foi o que nos fez ser quem somos no mundo do futebol.
Texto de Pedro Heitor de Los Futebólicos.