Meus pais incentivaram a prática esportiva na minha vida desde que eu me conheço por gente. Seja na dança, na patinação, no judô, no futebol ou na capoeira. Eu fiz um pouquinho de tudo até meus 15 anos. Para eles, mais importante que a atividade física eram os valores – como disciplina, coletividade, perseverança – que os esportes podiam trazer para a minha vida. E trouxeram.
A minha experiência me fez enxergar as modalidades muito além do esporte. Os campeonatos são legais: eu paro tudo para assistir a jogos de tênis e amo as Olimpíadas. Mas o que faz meu olho brilhar são as transformações de vida que cercam essas atividades. O que me emociona de verdade é ver uma Rafaela Silva sair da Cidade de Deus para se tornar a primeira brasileira campeã mundial de Judô.
Desde que entrei no FootHub, fui bastante pressionada (no bom sentido!) pelos meus colegas para também ter uma coluna por aqui – além da Biblioteca Ruy Carlos Ostermann, editada por mim semanalmente. Mas eu não queria “escrever por escrever”, queria algo que me encantasse. Foi quando eu lembrei da Júlia de 21 anos que entrou na faculdade de jornalismo porque queria mudar o mundo.
Não acredito que eu vá mudar o mundo, mas mensalmente a gente vai se encontrar por aqui e eu vou te contar sobre algum projeto que utiliza o esporte para transformar o futuro de algumas pessoas. Que utiliza o esporte para-além-do-esporte. Que trabalha para deixar o mundo um pouquinho melhor. Espero que você se encante também.
A diferença na vida de 20 mil crianças
Alceu Natal sempre foi um apaixonado por jogar futebol, mas não possuía o talento necessário para ser atleta. Formou-se em direito e trabalhou alguns anos na advocacia empresarial, quando percebeu que não era aquilo que queria fazer da vida. Então, resolveu tirar um “sabático” na Inglaterra.
Logo que chegou em Liverpool, Alceu conheceu o projeto social contra o racismo “Show the red card to racism”, onde trabalhou como voluntário e começou a rabiscar algo parecido para fazer no Brasil. Voltou ao país em 2006 e, usando como referência a iniciativa inglesa, que ensinava futsal para crianças, fundou a ONG Futebol de Rua.
“Eu estava fazendo um curso de marketing esportivo na ESPM e sempre que precisava apresentar um trabalho, trazia o Futebol de Rua, seja financeiro, marketing… Até que um dia, um professor me perguntou o que era aquilo, onde o projeto funcionava, etc. Falei que não existia na prática e ele respondeu que isso ia mudar”, conta Alceu.
O instituto Futebol de Rua nasceu uma semana depois, com Alceu dando aula de futsal para 90 crianças da Comunidade de Heliópolis, em São Paulo.
Já em 2007, o Instituto foi convidado pela Prefeitura Municipal de Curitiba a organizar, em 72 escolas municipais, um festival de futebol de rua. A ideia era comemorar o Dia Mundial do Fair Play. O festival durou vários dias e, após esse bem-sucedido cartão de visitas, Alceu e outros participantes da ONG foram convidados a fazer uma palestra sobre a iniciativa para os agentes públicos. Assim, surgiu o convite para implantar o projeto em três escolas públicas na Regional Boa Vista, em Curitiba.
Hoje, o Futebol de Rua tem 22 franquias sociais pelo Brasil – chegaria a 35 até metade de 2021 – e tem cinco projetos em andamento. 90% das sedes funcionam em escolas estaduais ou municipais, outras em quadras e centros esportivos comunitários, todas com a Lei do incentivo ao esporte, patrocínio e doações. Em Porto Alegre, cidade em que o FootHub nasceu, a ONG trabalha no Bairro Humaitá, patrocinado por uma empresa local.
Alceu conta que mais de 20 mil crianças e adolescentes já passaram pelo projeto e que mantém contato com muitos da primeira turma, de Heliópolis. “A gente tem um grupo no whatsapp. A maioria já tem filhos, tá casado, mas é muito legal receber as fotos das famílias e ver que ajudei vários daqueles jovens a seguirem um caminho longe do crime, que é uma realidade muito presente nas comunidades”.
Valores e conhecimento, além das regras do futebol
Na Copa de 2014, o Futebol de Rua teve sua sede principal construída, com o auxílio da Prefeitura de Curitiba e do Lions Raw, projeto inglês que ajuda instituições de transformação social em todo mundo. A construção tem salas de aula, auditório, quadras, escritórios e um pequeno espaço para livros.
Antes das atividades de futsal, as crianças participam de debates e palestras sobre diversos assuntos, como gênero, racismo, empoderamento feminino, leis de trânsito ou outros esportes. O objetivo é ensinar aos jovens sobre assuntos cotidianos que superam o espaço das quadras de futebol.
Na prática esportiva, o drible vale mais do que o gol e apitos não são usados, para que eles sejam responsáveis pelas regras do jogo. Alceu diz que incentiva as crianças a terem sonhos, mas deixa claro aos pais que o FdR não é uma escolinha de futsal e que não tem a pretensão de formar novos Pelés ou Messis.
“É claro que a gente incentiva os sonhos. Eu costumo dizer para eles que sonhar grande ou sonhar pequeno o trabalho vai ser igual. Mas quando eles ficam mais velhos, é muito mais importante que a gente forme eles como cidadãos para ter um trabalho digno do que deixar eles frustrarem-se por não virarem grandes jogadores”, relata Alceu.
Além da formação cidadã, o Instituto trabalha desde 2006 com 50% das vagas do projeto destinada para meninas e todas as atividades são mistas. Hoje, dos 68 funcionários fixos do Futebol de Rua, 70% são mulheres.
“A gente tenta fugir do estereótipo. Cada sede tem um profissional de pedagogia e um de educação física e a maioria é professora de educação física. Chega a ser até engraçado ver a cara dos diretores/administradores das escolas quando chega a professora e o pedagogo, porque estamos acostumados com o contrário né?”
Virando o jogo e a fome no país
Assim como o FootHub e diversos projetos pelo mundo, o Futebol de Rua também precisou se adaptar à pandemia de Covid-19. Por ser um espaço físico, muitos em escola, os trabalhos em várias das sedes precisou ser pausado.
Nesse tempo, Alceu e sua equipe perceberam que muitas famílias dos participantes estavam passando por dificuldades como fome e dificuldades financeiras. Por isso, uniram-se à CUFA (Central Única das Favelas) do Paraná para arrecadar alimentos e cestas básicas.
A primeira arrecadação do Virando o Jogo, em 2020, arrecadou mais de 14 toneladas de alimentos e fez a diferença para mais de 300 famílias no Natal. A segunda edição já recebeu mais de 15 toneladas e você pode ajudar também pelas redes sociais do Instituto FdR (https://www.instagram.com/institutofutebolderua/).
“É claro que eu preferia estar com as sedes funcionando e trabalhando para tornar esses jovens cidadãos melhores e dignos, mas que diferença isso iria fazer se eles não têm o que comer? E é como se diz: a fome tem muita pressa. E a gente sempre pode ajudar.”
Texto de Júlia Vargas.