Você está na sua tradicional pelada com os amigos ou mesmo em um campeonato amador da sua cidade. Para alguém que não é propriamente um atleta, está indo bem, fazendo o simples e sem correr muitos riscos. De repente um drible desconcertante lhe é dado e o caos se estabelece.
Tenho certeza de que essa cena se passa na cabeça da maior parte das pessoas que gostam de futebol, para não dizer de todos. É uma sensação indescritível de vergonha e, sem purismos, raiva. Toda a sua concentração se esvai. Tudo isso, “do nada”. Me remete a algo que li outrora.
“Em todo pensamento se dá algo que não somente não pode ser pensado como, sobretudo e em tudo que se pensa, significa pensar, isto é, faz e torna possível o pensamento. Este “não pensado”, que nunca poderá ser pensado, é, pois, um nada” (Palavras de Emmanuel Carneiro Leão, em apresentação à edição de 2005 do livro “Ser e Tempo”, de Martin Heidegger)
Parece ser complexo e de fato é. A ideia consiste numa ação que caracteriza, faz parte e torna possível o pensamento, incapaz, contudo, de ser pensada. É a origem do pensar e ao mesmo tempo o próprio pensar. Mas inconcebível à razão. Em resumo, um nada. É um nada que cria.
É desse nada que o jogador com a capacidade criativa tira os seus recursos mais inalcançáveis àqueles menos afortunados, tal como um mágico que tem na sua manga as cartas que ilusionam aos espectadores. O engano é arte e a América do Sul é um celeiro de artistas.
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Para continuar com o exemplo do ilusionista, ele precisa saber manipular a plateia para que eles foquem numa ação secundária, enquanto a mágica propriamente dita acontece sem que ninguém perceba. É um jogo de indução ao erro.
O craque concede ao defensor alguma vantagem, seja pela redução do ritmo ou por um movimento corporal “incorreto”, para logo em seguida demonstrar que essa superioridade que o defensor acreditava ter era somente uma utopia. Ele é dono do tempo e deixa isso muito claro.
Quando Riquelme direcionava todo o seu corpo para um lado, a bola iria para o outro. Cruel. O mesmo com Alex. Assim como com Ronaldinho, Garrincha, Ronaldo, Aimar, Gallardo, Pelé. Maradona nem se fala. É assim com Messi. Para escolher poucos (e bons).
Neymar de costas para o adversário, recuando, tem a intenção de gerar confiança no marcador para o desarmá-lo. Fatal. Não importa se você é Kimmich, ele vai tirar um elástico invertido na sua frente. Não importa se você é Muller, a bola vai ser colocada entre as suas pernas. O encanto da genialidade não perdoa ninguém.
É nosso. É cultural. Quando se nasce nessa terra, com tantas dificuldades, com tantos obstáculos, não existe outra opção que não seja inventar. Para vencer no futebol e, em maior escala, na vida. A maioria dos artistas surge de um nada e é também um nada que faz surgir tudo.
Texto de Pedro Heitor de Los Futebólicos.