De uns tempos para cá, quando um caso de violência doméstica envolvendo jogadores de futebol é noticiado, o foco da mídia e da opinião pública é centrado no debate de versões.
Alex Caparros/Getty Images
“sua desgraçada”
“p*ta”
“torce pra um dia eu não te vê
Pq se eu te vê
Você vai tomar um pau”
“vagabunda”
(então no Corinthians, hoje no América-MG)
“Tomara que você morra”
“Você foi enganadora (…) fez isso com todos os macho que passou na sua vida”
Antony (jogador do Manchester United)
“eu acabo com sua vida”
“eu acabo com minha vida
Mas com a sua antes”
“Some
Sua p*tinha
Paga de gatinha aí com meu celular
Com as coisas q eu te dei
Sua kenguinha
Vou ouvir minha mãe
Se n vou matar vc
Por ódio
Por ódio de usar minhas coisas com outro
Sua desgraçada”
“vou te pegar
Quebrar vc”
“Tchau p*ta”
“Corna”
“Por mim matava vc fdp”
“devolve o celular se n tu morre
O carro do teu pai some
Ou ele some
Ou vc”
“eu vou matar vc
Sua p*ta
Eu acabo com vc”
Pedrinho
(então no São Paulo FC, hoje no América-MG)
Os diálogos acima são trechos de mensagens reais, enviadas pelos atletas Rodrigo Varanda, Antony e Pedrinho a suas respectivas ex-namoradas.
De uns tempos para cá, quando um caso de violência doméstica envolvendo jogadores de futebol é noticiado, o foco da mídia e da opinião pública é centrado no debate de versões. As atenções se voltam para prints e áudios e não se percebe a repetição de um modelo de comportamento. A distância temporal entre um caso e outro leva consigo a perspectiva estrutural desse tipo de violência e a chance de trazer para o centro um debate mais amplo.
Há muito mais em comum entre as três histórias do que o fato de envolverem jogadores de futebol e ex-namoradas.
Ciclo da Violência
Embora as circunstâncias de vida, raça e renda variem, a psicóloga norte-americana Lenore Walker identificou que as agressões cometidas no contexto doméstico costumam ocorrer dentro de um ciclo composto por três fases e repetido em looping: escalada da tensão, violência efetiva e “lua de mel”.
A escalada da tensão
“Vivi um conto de fadas no início e no fim meu maior trauma (…) Muitas vezes eu ia jantar sozinha em Londres, onde ficava durante a semana para estudar, e era obrigada a ligar a câmera do celular para que ele me vigiasse, eu passava o jantar todo com ele me olhando. No início não percebia que era ciúme doentio, parecia cuidado somente.” (Gabriela Cavallin, ex-namorada de Antony)
Na escalada da tensão, o agressor fica tenso e irritado por coisas insignificantes, como ligações de celular, conversas com amigas, até mesmo a relação da mulher com os filhos. Nessa fase, o comportamento masculino apresenta acessos de raiva, muitas vezes com a destruição de objetos, e caracteriza-se por ameaças à mulher e episódios em que se busca humilhar a vítima. A mulher, por sua vez, tende a negar que algo mais sério esteja acontecendo, não dando muito relevo aos fatos, escondendo-os de amigos e familiares e buscando justificar a conduta a partir de condições externas à relação ou de ações suas que procurem explicar o comportamento do companheiro. À medida que a tensão aumenta, chega-se à fase dois.
A violência efetiva
A segunda fase é marcada pela perda de controle do agressor, que materializa a tensão em violência efetiva, seja ela física, verbal, patrimonial, sexual, psicológica ou moral.
A violência se expõe e quando não é tomada nenhuma atitude por parte da vítima, não raro, passa a ser incorporada e integrar a estrutura do relacionamento, dando continuidade a um ciclo que, muitas vezes, deságua em tragédias.
Em outras situações, é aqui que costuma haver uma tomada de decisão, como buscar ajuda, sair de casa ou registrar uma ocorrência policial, como fizeram as ex-namoradas de Antony, Rodrigo e Pedrinho.
A “lua de mel”
“Eu quero que vc fique perto pra gente recomeçar a se amar e continuar as coisas boas que temos
Eu te falei coisas boas pessoalmente aí também
Eu pedi perdão por tudo
Por tudo mesmo
Me arrependo desdo meu primeiro erro com vc”
“eu vou está aqui de volta esse antony ainda está aqui pra sempre confia em mim vc sabe que eu te amo muito muito, vc me ensinou a amar uma mulher de verdade e vc sabe de tudo isso” (Antony)
“Ele se descontrolava, virava bicho, depois chorava, pedia perdão, era carinhoso. Eu acreditava na mudança dele. (…) Minha mãe me avisava, minhas amigas, mas eu não acreditava que ele fosse capaz de fazer algo mais sério comigo, algo mais grave. Hoje vejo que eu estava errada.” (Gabriela Cavallin, ex-namorada de Antony)
A terceira fase é caracterizada pelo arrependimento do agressor, que se mostra amável e cheio de promessas de mudança de comportamento. Por um período as coisas ficam calmas, a mulher percebe os esforços, tem esperanças e volta a investir na relação. Porém, o agressor não consegue sustentar por muito tempo a mudança prometida, a tensão reaparece e o relacionamento retorna à fase um, reiniciando o ciclo com um aumento da gravidade das ações.
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De Morgana Moraes Fonseca
Relacionamentos conturbados e a dificuldade de se enxergar como autor de violência
“Sobre as ameaças, vou mostrar pra vocês quantas cicatriz eu tenho dela, já tomei copada dela, facada e muitas coisas a mais. Eu vou mostrar quem ela é. Eu dei a única camisa do São Bernardo pra ela. Ela pegou a camisa e mandou foto desse jeito para meu melhor amigo, eu estava muito nervoso com isso. (…) Os dois são safados, só estou postando pra me defender e vocês entender motivo de tudo. Ela não é a pessoa que mostra ser, eu tenho meus erros quando estou nervoso, mas ela não é isso, gente, confia.” (Rodrigo Varanda)
“Posso afirmar com tranquilidade que as acusações são falsas, e que a prova já produzida e as demais que serão produzidas demonstram que sou inocente das acusações feitas. Minha relação com a Sra. Gabriela era tumultuada, com ofensas verbais de ambos os lados, mas jamais pratiquei qualquer agressão física.” (Antony)
Não é raro o autor da violência doméstica se enxergar como vítima, seja por acreditar que a mulher criou a situação que levou ao ato violento, seja pelas agressões terem sido, em algum momento, mútuas, seja pela natureza conturbada do relacionamento.
Defender-se atacando não é apenas uma estratégia. Para muitos dos homens envolvidos em situações de violência doméstica é uma crença. É uma decorrência, não natural, óbvio, mas nascida de relações amorosas adoecidas que se alimentam da agressão e do poder. Estar mergulhado nessas relações e não compreender o quão tóxicas se constituem impede a autocompreensão e a autocrítica. O desrespeito se padroniza e passa a fazer parte de uma realidade que não parece ser compreendida pelo atleta mesmo quando a opinião pública se volta contra ele e não mais o identifica como um jogador de futebol, mas como um agressor de mulheres.
Estratégias de enfrentamento estruturais para um problema estrutural
Cada um dos três casos citados terá seu desfecho policial e judicial, o que não significa solução.
O problema, pano de fundo deles, não se resolve com uma sentença. Da mesma forma, não se resolve com uma decisão do Clube quanto a manter ou negociar o jogador envolvido. Desfechos pontuais são, sim, necessários para direcionar consequências na esfera individual, mas não são suficientes para enfrentar o problema que está por trás de todas elas.
É só questão de tempo até que uma nova situação, envolvendo outro atleta, chegue ao conhecimento do público, sem contar as que se dissiparão nos bastidores, sem manchetes ou discussões. A cada dia, 2500 ligações são feitas ao 190 para relatar violência doméstica. Mudam as personagens, as profissões, os locais de domicílio e as classes sociais, mas o script se repete.
A fama, o dinheiro e o staff, que parecem alçar jogadores a um outro patamar, não os imunizam de passar por problemas de homens comuns. Pelo contrário. São temperos que, aliados a outros do universo da bola, como poder e preponderância masculina, potencializam a ocorrência de violências.
É por isso que não basta aos Clubes ligar o alerta apenas quando a violência vem a público e tomar decisões difíceis após o problema estourar. É preciso, também, buscar estratégias de conscientização e prevenção para seus atletas, preferencialmente desde a base, a partir da construção de uma cultura de respeito. A desestruturação da lógica de violência nas relações domésticas é um processo lento e contínuo a exigir uma atuação positiva desde baixo. Em um mundo ideal, isso já se justificaria apenas pelo papel social que as entidades têm. No real, justifica-se pelo mercado, o que também é legítimo, para se evitar perdas econômicas, danos à imagem e desperdício de dinheiro e tempo investidos desde a formação.
Texto de Felipe de Oliveira e Mariana Gastal