Foto: Acervo Cruzeiro
Destinadas a descobrir e formar jogadores, as categorias de base estão se tornando, cada vez mais, uma eficiente e segura fonte de renda para os clubes brasileiros. Mesmo que a transferência de atletas ainda em fase de formação ocorra há décadas, a exemplo do caso do atacante Ronaldo ‘fenômeno’, que já em 1994 foi negociado do Cruzeiro (MG) para o PSV Eindhoven, da Holanda, com apenas 17 anos de idade, esse tipo de transação teve um aumento significativo a partir dos anos 2000.
Nos últimos anos, cresceu o número de jovens atletas negociados para o exterior, e os investimentos em formação nas categorias de base passaram a ter importância cada vez maior no planejamento financeiro das agremiações. Entre os clubes brasileiros que recentemente mais lucraram com as vendas de jovens atletas estão o Athletico (PR), Corinthians (SP), Flamengo (RJ), Grêmio (RS), Palmeiras (SP), Santos (SP), e o São Paulo (SP).
Segundo dados do observatório do futebol apresentado no artigo Global study of football expatriates (2017-2023) desenvolvido pelo CIES – Centre Internetacional d’Étude du Sport, o Brasil lidera o ranking de transferências de atletas ao exterior, com recentes 1.289 transações, sendo que 174 destes tinham menos de 23 anos de idade no momento da migração. A maior parte destes trabalhadores seguem para países como Portugal, Japão, Espanha, Itália, Malta, Turquia, China e Estados Unidos – países que não são considerados do primeiro escalão do futebol mundial. Segundo Victor (2020), Portugal é o que mais recebe atletas brasileiros e acaba fazendo o papel de possível ponte de valorização do atleta, abrindo-lhe as portas para as principais ligas europeias.
Ainda segundo o CIES, em recente estudo publicado, o Brasil se destaca na revelação de jovens com 11 clubes entre as 100 melhores bases do mundo. Apesar da regulamentação da FIFA, que proíbe a transferência internacional de jovens menores de 18 anos, os clubes europeus investem também na observação de atletas em formação que atuam no Brasil e, para conseguir incorporá-los aos seus plantéis, utilizam-se da ida de famílias que migram para o “velho” continente em busca de oportunidades e melhores condições de vida, uma maneira mais fácil de terem os atletas com baixo custo e maior possibilidade de retorno financeiro.
É natural, inclusive, que as grandes marcas do futebol nacional realizem intercâmbios esportivos na intenção de fomentar a formação de seus jovens e apresentar seu produto ao mercado internacional – a exemplo das já conhecidas parcerias entre clubes como o Lyon da França e o Resende F.C do Rio de Janeiro, e entre o Hoffenheim da Alemanha e o Barra F.C de Santa Catarina.
A estratégia se justifica, pois no Brasil, a realidade vivenciada pela maioria dos jovens que se profissionalizam e permanecem jogando nas divisões profissionais está muito distante das condições e dos salários das principais ligas nacionais, e ainda mais das do exterior.
Para De Paula e Rocha, considerando o imaginário social desenvolvido em torno da carreira de jogador de futebol, que contempla parte da afirmação da masculinidade e da identidade do brasileiro e confere status para os praticantes desse esporte, mostram que a busca de um grande número de meninos, seus familiares e agentes, não é somente por uma trajetória profissional mas também por um conceito que envolve noções de honra e prestígio, tendo em vista que a consolidação na carreira de jogador permite a possibilidade de expansão desses valores para além da comunidade local, atingindo, em alguns casos, patamares nacionais e mundiais, quando o indivíduo se torna ídolo em seu clube ou seleção, por exemplo.
Tal dimensão sociológica é algo que se deve levar em consideração na construção do desejo de se tornar jogador profissional, que tende a ignorar o conhecimento sobre as dificuldades do processo de profissionalização e a baixa representação dos cargos valorizados nesse mercado. Nesse sentido, ocorre uma mobilização pessoal por parte dos familiares como resposta às dificuldades, para assim potencializar o futuro do filho futebolista.
Soares mostra que aqueles que chegam ao topo da cadeia esportiva servem para retroalimentar os valores ideológicos disseminados por veículos de mídia diversos. No entanto, ao se fazer o contraponto dos que são exaltados como exemplos de sucesso, constata-se que a realidade é muito dura e apresenta mais frustrações do que êxitos para a maioria dos pretendentes ao posto de jogador profissional de futebol. Muitos são levados a trilhar um caminho árduo em busca de um sonho pessoal e familiar capaz de superar barreiras sociais e econômicas.
O mercado do futebol é tão ou mais competitivo que o próprio esporte – considerando que seja possível separar uma coisa da outra –, com grande demanda de interessados, e poucos postos de trabalho bem remunerados, ampliando ainda mais as possibilidades de insucesso. Dados da CBF revelam que há cerca de 800 clubes profissionais registrados no País, o que representa uma estimativa de 10 a 15 mil postos de trabalho para futebolistas. Porém, apenas 2,5%, isto é, 20 clubes, detêm 90% da preferência dos torcedores.
Levando-se em conta que um elenco profissional possui em média 26 atletas, a estimativa é de que se tenha somente 520 postos de trabalho na parte mais valorizada do mercado (Série A do campeonato nacional).
A título de exemplo, em 2019, o portal do Globo Esporte apresentou dados sobre a média salarial dos atletas registrados na CBF que atuaram em competições nacionais e estaduais no ano anterior (2018). Entre os 11.683 atletas profissionais com contratos ativos, 55% recebiam aproximadamente R$ 1 mil mensais, outros 33% recebiam até R$ 5 mil e apenas 1% recebia acima de R$ 500 mil.
Além disso, deve-se levar em conta a duração dos contratos dos atletas que não integravam equipes participantes das principais competições nacionais e, consequentemente, passavam um período do ano desempregados.
Damo descreve os problemas do sistema futebolístico, uma profissão quase sempre perecível, assinalada por vicissitudes, cobranças, reveses, lesões e pouco (ou nenhum) glamour na maioria dos casos, visto que muitos dos jogadores estão desempregados ou ocupando vagas temporárias, a depender da sazonalidade dos campeonatos, ganhando valores próximos ao salário-mínimo.
O pontapé inicial do cenário atual ocorreu somente a partir da década de 1930, quase quarenta anos após os primeiros registros da prática do futebol no Brasil, quando se tornou oficialmente profissão. Com isso, a modalidade passou a ser vista como uma opção de trabalho que poderia proporcionar ascensão social e financeira a uma camada da população com poucas possibilidades de emprego e renda.
Os benefícios dessa profissão, aliados às poucas opções de lazer e ao limitado acesso às escolas, atraíram o interesse de parte da população masculina infantil e jovem, que ocupava seu tempo livre praticando o jogo sem a mesma organização e estrutura dos clubes socioesportivos de elite da época.
Apesar da popularização da modalidade e do surgimento de novos clubes e torneios, naquele tempo, dava-se ainda pouca importância para a formação de atletas e os treinamentos de equipes. Tal postura era justificada pela crença de que o desempenho era fruto do talento individual dos jogadores, que nasciam dotados de um ‘dom natural’ para o jogo, sendo desnecessário, portanto, submetê-los a constrangimentos baseados em métodos científicos de preparação física e desenvolvimento da técnica e da tática. Essa visão foi maximizada pelas conquistas da seleção brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962, período que legitimou o chamado “futebol-arte à brasileira”.
Porém, logo na edição seguinte do torneio, em 1966, realizada na Inglaterra, o selecionado do Brasil foi surpreendido por um estilo de jogo conhecido como ‘futebol-força’, que tinha como bases a organização tática, o sentido coletivo de equipe e a intensidade de jogo, a partir do desenvolvimento da preparação física de seus atletas.
A eliminação precoce da Seleção Brasileira, ainda na primeira fase daquele mundial, despertou uma preocupação pedagógica sobre o processo de formação de atletas existente no País. Na época, o principal fator apontado pelos treinadores, e principalmente pela mídia esportiva, para justificar o fracasso foi o insuficiente preparo físico e os maus hábitos de vida (frequente uso de bebidas, cigarros, festas, etc.) dos jogadores.
Inspirados em um modelo de ‘produção’ de atletas já existente no continente europeu, sobretudo pelas seleções nacionais vitoriosas daquela edição do torneio (a campeã Inglaterra e a vice-campeã Alemanha), agentes especializados do campo esportivo (treinadores, preparadores físicos e jornalistas) falavam sobre a necessidade de corrigir as insuficiências físicas e combater os vícios do jogador brasileiro desde sua formação de base. Esses objetivos seriam satisfeitos se trabalhados desde a tenra idade e sem interrupções ao longo de todo o processo de formação profissional do atleta.
A chamada ‘corrente modernizadora’ era favorável à adoção do modelo de jogo europeu e de métodos científicos de treinamento esportivo, sendo liderada pelas figuras de Cláudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira, preparadores físicos da seleção brasileira que conquistou o tricampeonato mundial em 1970, no México.
Curiosamente, a história parece se repetir; a derrota da seleção brasileira para a Alemanha (campeã do torneio) na semifinal da copa do mundo de 2014, realizada no Brasil, pelo placar de 7×1, movimentou uma série de debates, tanto sobre a formação do atleta quanto de dirigentes, treinadores e demais agentes que atuam nesse processo, bem como das estruturas e dos projetos de formação do jogador brasileiro.
Outra vez, tomaram-se como referência os maus resultados, sobretudo pelo fato de que o quinto e último título mundial até o momento fora conquistado em 2002, por uma geração de atletas que já se aposentou dos gramados.
A impressa televisiva assumiu o papel de mostrar os problemas da formação brasileira, e o repórter Eric Faria apresentou uma reunião de fatores ou causas que poderiam explicar o modelo precário de formação da base nacional no documentário A Base: da terra à grama, que foi exibido em quatro episódios no programa Esporte Espetacular (Rede Globo) e mostrou os principais dilemas da formação do futebolista brasileiro. A CBF também foi responsabilizada por esse período de fracasso da Seleção, sendo acusada de não dar suporte suficiente para a formação das novas gerações de atletas e agentes formadores.
A resposta imediata foi a troca de comando da Seleção principal e o anúncio de reformulações nos departamentos de competições e seleções de base, bem como a constituição de um programa de certificação de treinadores e demais agentes atuantes no futebol de base e no futebol profissional, similar ao modelo existente na União das Associações Europeias de Futebol (UEFA) e também na Asociación del Fútbol Argentino (AFA), tendo como objetivo, a médio e longo prazo, qualificar a formação ofertada pelos clubes aos atletas nacionais.
O debate continua no próximo texto…
Texto de Lucas Klein
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