A Inglaterra de meados do século XIX foi berço de duas importantes concepções que possuem uma relação pouco intuitiva na qual tentarei elucidar com esta sequência de dois textos. O futebol ao tornar-se popular passa a ser entendido como um fenômeno social ou, segundo a sabedoria popular afirma, um espelho da sociedade e da vida que levamos, não só pelos valores coletivos da humanidade, mas também individualmente nas batalhas travadas pela sobrevivência.
Charles Darwin, naturalista britânico se evidência pela eminente contribuição na teoria da evolução, apresentada na sua obra-prima, “A Origem das Espécies”. Porém vamos nos ater a ideia exposta no livro de que os organismos mais fortes ou mais rápidos não são os mais prováveis de sobreviver, mas sim os mais adaptáveis aos diferentes ambientes ou contextos estabelecidos, deixando os outros para trás no processo que ele denominou “seleção natural”.
Partindo dos pressupostos citados acima, me arrisco a dizer que se o proeminente inglês estivesse vivo hoje daria fundamental atenção à figura central deste texto. O português Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro é, sem dúvida, uma das pessoas mais conhecidas no mundo, com uma legião de fãs e de haters, talvez até em mesmo número, com conquistas expressivas e destroçando recordes a cada ano que passa. Porém mais interessante do que viver na mesma era que o português é compreender como o gajo chegou a este patamar.
Cristiano aprendeu cedo que mesmo com o enorme talento que possuía, havia a necessidade de se desenvolver em diferentes aspectos do jogo, ele não queria ser somente bom, ou como Darwin definiria, adaptável. A sobrevivência era só a primeira das suas intenções, para chegar ao topo do topo ele precisava ser o mais rápido, o mais forte, o mais determinado. E mais do que isso, Cristiano parece ter interpretado literalmente a famosa frase de Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático: “Ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras.” Assim como nós nos modificamos enquanto ser, o Cristiano de hoje não é o mesmo de ontem e o de amanhã não será o mesmo de hoje. O futebolista de fases, Cristiano Ronaldo.
Tentaremos aqui entender cada uma destas fases. Para isto, devemos retroceder aos primórdios da sua profissionalidade, ainda garoto, pelo Sporting Lisboa. Cristiano se caracterizava pela sua velocidade, pelos dribles desconcertantes e pela capacidade de mudar de direção, aspectos muito valorizados em jogadores de lado de campo.
Foi assim que o Manchester United, na figura de “Sir” Alex Ferguson, demonstrou interesse pelo gajo promissor e o tirou do seu país natal, em agosto de 2003, após, somente, 31 partidas pelo clube de Lisboa.
No seu início em Manchester, Cristiano continuou jogando pelas pontas, principalmente pela direita no tradicional 4-4-2 inglês, em que uma dupla permanece pelo meio de campo, uma no ataque e dois jogadores se mantém abertos pelas laterais, podendo ajudar os atacantes ou gerar amplitude.
Atuando a pé natural e um pouco mais distante do gol, o português totalizou nas suas duas primeiras temporadas mais assistências que gols, desenvolvendo-se nos cruzamentos e passes mais verticais, além de manter suas valências de fintas em velocidade.
Um aspecto importante, que ensejou o seu destaque, foi a sua evolução física já nas primeiras temporadas na Inglaterra, partindo de um garoto franzino e sem muita força para um atleta de condição corporal invejável, passando a ganhar muito mais duelos, em especial pelo alto, visto que a Premier League sempre foi conhecida pela sua intensidade de jogo.
Por conta deste progresso muscular e o refinamento do seu jogo aéreo, Ferguson percebeu que poderia utilizar o gajo ainda mais perto do gol, potencializando o seu aspecto artilheiro que ainda não havia se manifestado de forma contundente.
Há de se destacar que tendo mais influência em zonas mais próximas ao gol, não só os números de tentos aumentaram, mas também de assistências. Um exemplo disso é que ele passa de 12 gols e 9 assistências na época 05/06, terminando a temporada 06/07 com 23 gols e 21 assistências.
Cristiano começa ali a se transformar num jogador letal, em contraponto a muitas das críticas que recebeu anteriormente por conta de dribles “desnecessários” e jogadas que não se mostravam eficazes na construção de gols. Chegando, assim, ao ápice da sua passagem pela terra da rainha, no fim de 2008, com os títulos da Premier League, da UEFA Champions League, além da chuteira de ouro e da tão sonhada bola de ouro.
Neste contexto de extremo sucesso ele chega ao Real Madrid como a maior contratação da história até então, com muita expectativa pelo que se sucederia. Nos galácticos, na sua primeira temporada, já teve uma adaptação, em muitas partidas foi utilizado como referência do ataque, função que já tinha feito em situações específicas no United.
Nos 3 anos seguintes, com Mourinho assumindo o comando técnico em Madrid, Cristiano alia a sua sempre presente velocidade com o seu instinto de matador para fazer parte de um dos ataques mais eficientes da história do clube, destruindo os adversários em transições ofensivas bem elaboradas, partindo da esquerda para zonas mais centrais a fim de utilizar bem a sua finalização, inclusive de fora da área. Dessa forma, vários recordes de gols foram batidos, como o da La Liga 11/12 com 121 gols marcados e, além disso, conseguiu levar o Real às quartas de final de UEFA Champions League depois de 7 anos seguidos caindo nas oitavas. Com Mourinho, Ronaldo teve em média incríveis 56 gols por temporada.
Outro treinador que potencializou os aspectos artilheiros de Cristiano foi Carlo Ancelotti, com quem o português voltou a ser campeão da UEFA Champions League, batendo a marca de mais gols em uma só edição.
No dia 4 de janeiro de 2016 o Real Madrid promove Zinedine Zidane ao cargo de treinador e inicia-se assim o último grande processo de transformação do português, passando a ser muito mais um segundo atacante, aproveitando-se do entrosamento com Karim Benzema e dos espaços que o francês criava a partir de suas movimentações.
Neste sentido, Cristiano não necessita participar tanto do momento defensivo e se preocupava em poupar sua energia e concentração no terço final do campo, tendo menos influência nas construções em zonas mais recuadas. Essa mudança fez com que Ronaldo chegasse nos períodos decisivos da temporada com tanque cheio e pudesse ser decisivo para o Real Madrid, principalmente no mata-mata da UEFA Champions League, mostrando, assim, toda a sua estrela. Foi assim que o clube de Madrid conseguiu seu tricampeonato europeu de forma hegemônica.
Em 10 de julho de 2018, Cristiano Ronaldo é anunciado na Juventus, encerrando assim o seu ciclo extremamente vitorioso no Real Madrid como o maior artilheiro da história do clube, com 450 gols em 438 partidas. Em Turim, o gajo chega com o desafio de levar a “Velha Senhora” ao título da UEFA Champions League, o que não ocorre desde a temporada 95/96. Mais do que nunca Cristiano se apresenta como um segundo atacante, demonstrando todo o seu poder de fogo dentro da área na equipe que foi comandada por Maximiliano Allegri.
Já nos anos seguintes na Juve, seja com Maurizio Sarri ou com Andrea Pirlo, diferentemente do que acontecia no Real de Zidane e até com Allegri, o português se destacou pelo protagonismo criativo nas jogadas também fora da área, gerando passes decisivos e muitas grandes chances criadas para seus companheiros.
O menino retorna como homem feito, carregando um rol de conquistas gigantesco e com a tão grande vontade de continuar vencendo e quebrando recordes. O sol do lado vermelho de Manchester se expõe com muito mais gracejo e a expectativa é grande, assim como o camisa 7 dos red devils, que, inclusive, já marcara dois gols na sua reestreia, pela Premier League 21/22, em partida válida contra o New Castle e ocorrida no Old Trafford.
Inegável que Cristiano Ronaldo se colocou nos patamares mais altos da história do futebol mundial e muito disso se deve à sua genialidade em se adaptar a diferentes contextos e evoluir o seu jogo de forma a potencializar as suas melhores características. Vida longa ao gajo.
Texto de Pedro Heitor, do Los Futebólicos.