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Antes de mais nada, é importante destacar que este texto possui um caráter reflexivo, e não definitivo, buscando agregar o debate sobre o momento atual e os rumos do futebol brasileiro, levantando questões e ponderações que julgo pertinentes para tal.
A derrota para a Argentina, no dia 11/02, válida pela fase final do torneio Pré-Olímpico, confirmou a eliminação da Seleção Brasileira de futebol masculino, que não estará nas Olimpíadas de Paris de 2024. Apesar de sua excepcionalidade em relação aos outros torneios de categorias de base, por aceitar atletas de até 23 anos de idade, a eliminação precoce esquentou de vez um questionamento que vem sendo feito constantemente: o Brasil parou de produzir grandes jogadores?
Reprodução: GE. Foto: AFP
Já adianto que minha resposta é não, o Brasil não parou de produzir grandes jogadores. Porém, esta é uma resposta simples para uma questão um tanto complexa, onde alguns pontos precisam ser endereçados. Para atender aos objetivos deste texto, acredito que podemos elencar alguns dos problemas principais que fazem parte do debate público, colocando em dúvida a qualidade dos jogadores brasileiros que vem sendo formados nos últimos anos.
‘‘Quem somos?’’. Essa questão, quase que filosófica, norteia o que julgo ser o primeiro problema do futebol brasileiro na atualidade: passamos por uma crise de identidade. Quantas vezes você, leitor(a), não ouviu alguém dizer (ou disse para si mesmo) que não se sente representado pela seleção brasileira? Mas será que essa falta de representatividade corresponde, por si só, ao nível de qualidade dos nossos jogadores?
Não acho que o problema seja a qualidade dos atletas que vem sendo formados no Brasil, longe disso. O Brasil continua formando, em seus mais variados contextos, atletas de altíssima qualidade a nível técnico, tático, físico e mental. Basta uma rápida olhada para as grandes competições do futebol mundial para perceber a quantidade de jogadores brasileiros atuando por lá, além da chegada de atletas cada vez mais jovens nestes grandes centros e do protagonismo de jovens jogadores nos principais clubes do país. Então sim, o talento continua sendo formado, e em grande escala.
Se o problema não é a falta de talento e a qualidade dos jogadores, qual é? Ao meu ver, estamos deixando pelo caminho uma característica marcante, historicamente falando, do futebol brasileiro, sobretudo dos grandes craques. E que característica seria essa?
Autonomia, a capacidade de tomar decisões por si só, orientar-se e se autodeterminar independente de fatores externos. Creio que a autonomia seja uma característica marcante do jogador brasileiro ao longo do tempo. A liberdade e possibilidade de participar mais ativamente do jogo, de interpretar suas fases e momentos, de ser inventivo e intuitivo na tomada de decisão, autonomia de ser quem ele é. Mas o que leva a essa falta de autonomia?
Outros tempos, novas verdades?
O tempo passa e, com ele, a sociedade se transforma. As transformações ocorrem no âmbito social, econômico, político, cultural, psicológico, etc. O futebol, enquanto produto da sociedade, também se modifica e segue as lógicas do mundo em que está inserido. Se o mundo de hoje não é o mesmo de 10, 30, 50 anos atrás, o futebol também não é.
Historicamente, existem dois elementos que serviram como um primeiro contato das crianças com o futebol: o futebol de rua e o futsal. Muitos dos grandes jogadores da história do futebol brasileiro foram iniciados no futsal, e apesar de continuar fazendo parte dos processos de iniciação e formação em alguns clubes pelo Brasil, acredito que ainda não recebe a atenção e protagonismo que merece.
No caso do futebol de rua, englobo os jogos nos campos de terra, nas praças, no calçamento, no asfalto, etc. este tipo de jogo vem sendo cada vez menos praticado e valorizado, seja pela explosão de campos Society, pelas reconfigurações no espaço urbano, seja pela inserção da tecnologia cada vez mais cedo na vida das crianças, seja pelas lamentáveis necessidades ou contextos que obriguem as crianças a trabalhar.
A perca ou diminuição da prática dessas atividades, sobretudo do futebol de rua, breca o desenvolvimento de algumas qualidades, técnicas e cognitivas, de muito valor para a autonomia no geral. O drible, o domínio, o passe, a capacidade ser inventivo para resolver situações, a rapidez na tomada de decisão, a relação com a bola, a relação associativa com seus companheiros, a autoconfiança.
Portanto, o grande desafio é buscar soluções de como incorporar esses elementos na formação atual dos jogadores, respeitando e se adaptando as mudanças e diferenças da sociedade e do futebol de hoje com o de outrora, mas entendendo seus benefícios e importância.
Reprodução: Ponto Futuro
Formar de dentro, para fora
Como preservar a autonomia de um jogador sem conhecer e entender a pessoa que vem antes do atleta? Como desenvolver um jogador autônomo se o processo de formação não respeitar a especificidade e singularidade de cada pessoa que ali está? Creio que essas questões precisam ser refletidas se quisermos resgatar a autonomia como característica do jogador brasileiro.
Entender que aquele atleta que está sendo formado é um ser humano que carrega consigo vivências, experiências, virtudes e formas de se expressar com o mundo a sua volta. E assim vai ser cada atleta que participa dos mais diferentes contextos de formação pelo Brasil. Entendê-los e enxerga-los como seres humanos em formação e não como um produto sendo fabricado, é o primeiro passo para uma mudança de mentalidade.
Como já citado anteriormente, não significa que devemos deixar de lado as diferenças do nosso tempo presente com o passado. Pelo contrário, devemos sim usufruir de tudo aquilo que estiver ao nosso alcance, contar com a evolução da preparação física e da fisiologia, consolidar a psicologia nas etapas de formação, utilizar a tecnologia e os dados necessários para a melhoria desse processo e adicionar e familiarizar os jogadores à conceitos e competências táticas (individual e coletiva).
O que não podemos fazer, é esquecer que o jogo continua sendo jogado pelos jogadores e, sendo assim, é imprescindível que estes tenham o estímulo e a autonomia necessária para resolver as situações que o jogo apresenta, expressando-se da forma que são.
Na fronteira entre o saudosismo de um futebol brasileiro de outrora e a ânsia por um futebol brasileiro cada vez mais científico e controlado, creio existir uma linha tênue onde todos convivam em harmonia. Um lugar onde o futebol (e o tempo) presente conserva elementos daquilo que já foi e adota elementos daquilo já é, e será cada vez mais. Um futebol onde a tecnologia tem vez, as transformações do jogo têm vez, a inovação tem vez, e a autonomia dos jogadores tem vez.
Texto de Agildo Medeiros Neto
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